segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A juventude, a rainha e a revolução

[Quem tem medo de Maria Antonieta? ou melhor, que homem (hetero) não tem medo de uma inteligente, senhora de si, rica, jovem e bela? parece que vi alguns machos resmungando…? Provavelmente, para a maioria dos homens de sociedades conservadoras e tradicionais (caso do nosso sertão de cada dia, povoado de varões “desamparados intelectualmente”, para usar uma expressão do querido professor Eguimar Felício) somente os dois últimos adjetivos seriam bem vindos em uma mulher. Por sua vez, o filme Maria Antonieta poderia assustar não somente esses homens como vários outros ‘tipos’. Principalmente, aqueles que tem medo/preconceito da/com a juventude. Particularmente, a dimensão que mais gosto no filme é a estética juvenil apesar do filme tematizar um período histórico muito discutido nos bancos escolares: a Revolução Francesa. Outro elemento que muito me agradou foi o efeito causado pela sobreposição de uma narrativa histórica a uma trilha sonora contemporânea. Lembro-me da cena em que o casal real desce as escadarias ao som de um rock new wave oitentista. a cena, sem o áudio não teria a metade do impacto. Para além do risco do anacronismo (como alertaria os puristas professores de história de plantão, sacerdotes da ‘verdadeira’ história - que seria garantida pelo “acontecimento oficial/real”) esta opção da jovem diretora pode ser um elemento a contribuir para ganhar a atenção dos jovens de nosso tempo para uma história tão antiga quanto necessária de ser estudada: a história de uma jovem rainha – deslocada, angustiada e rica – às vésperas da Revolução Francesa. Outra dimensão do filme que deve ser ressaltada é o fato da personagem principal/atriz/diretora serem jovens e experienciar o mundo a partir de sua condição etária e cultural. A mulher que é sempre objeto de representação, é aqui sujeito; protagonista e não coadjuvante. A questão da representação da mulher no cinema é tão nuclear que originou o famoso teste (já postado anteriormente aqui) que ao propor três perguntas sobre a representação feminina na telona, comerciais ou não, revelam o quanto o cinema manipula sua imagem, atribuindo sentidos e delimitando a identidade feminina a ser seguida. Sem mais, deixo vocês outra vez na companhia do filósofo Vladimir Safatle e suas ricas e peculiares análises]
Maria Antonieta, por Vladimir Safatle
Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou um filme sobre Maria Antonieta. Ao contar a história da rainha juvenil que vivia de festa em festa enquanto o mundo desabava em silêncio, Coppola acabou por falar de sua própria geração.
Esta mesma que cresceu nos anos 1990.
No filme, há uma cena premonitória sobre nosso destino. Após acompanharmos a jovem Maria por festas que duravam até a manhã com trilhas de Siouxsie and the Ban-shees, depois de vermos sua felicidade pela descoberta do "glamour" do consumo conspícuo, algo estranho ocorre.
Maria Antonieta está agora em um balcão diante de uma massa que nunca aparece, da qual apenas ouvimos os gritos confusos. Uma massa sem representação, mas que agora clama por sua cabeça.
Maria Antonieta está diante do que não deveria ter lugar no filme, ou seja, da Revolução Francesa. Essa massa sem rosto e lugar é normalmente quem faz a história. Ela não estava nas raves, não entrou em nenhuma concept store para procurar o tênis mais stylish.
Porém ela tem a força de, com seus gritos surdos, fazer todo esse mundo desabar.
Talvez valha a pena lembrar disso agora porque quem cresceu nos anos 1990 foi doutrinado para repetir compulsivamente que tal massa não existia mais, que seus gritos nunca seriam mais ouvidos, que estávamos seguros entre uma rave, uma escapada em uma concept store e um emprego de "criativo" na publicidade.
Para quem cresceu com tal ideia na cabeça, é difícil entender o que 400 mil pessoas fazem nas ruas de Santiago, o que 300 mil pessoas gritam atualmente em Tel Aviv.
Por trás de palavras de ordem como "educação pública de qualidade e gratuita", "nós queremos justiça social e um Estado-providência", "democracia real" ou o impressionante "aqui é o Egito" ouvido (vejam só) em Israel, eles dizem simplesmente: o mundo que conhecemos acabou.
Enganam-se aqueles que veem em tais palavras apenas a nostalgia de um Estado de bem-estar social que morreu exatamente na passagem dos anos 1980 para 1990.
Essas milhares de pessoas dizem algo muito mais irrepresentável, a saber, todas as respostas são de novo possíveis, nada tem a garantia de que ficará de pé, estamos dispostos a experimentar algo que ainda não tem nome.
Nessas horas, vale a lição de Maria Antonieta: aqueles que não percebem o fim de um mundo são destruídos com ele. Há momentos na história em que tudo parece acontecer de maneira muito acelerada.
Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Curtir a vida é possível para ‘quem’?

[Segue, abaixo, o texto de alexandre leitão sobre o filme “Curtindo a vida adoidado” publicado originalmente na coluna Cine História do boletim eletrônico da Revista de História da Biblioteca Nacional. a análise não enfatiza outros elementos da linguagem cinematográfica além do conteúdo. mas, faz algo que todo historiador deve fazer: relacionar um fato (no caso o filme Curtindo a vida…) ao seu tempo (conjuntura social, econômica, cultural etc.). Para fazer isto, quanto mais erudição tivermos, mais a análise é recheada de interesse. boa leitura.]


A filosofia em Ferris Bueller, por Alexandre Enrique Leitão

[Texto sobre o filme Curtindo a vida adoidado (Ferris Bueller’s Day Off). EUA, 1986]



Ferris Bueller interpretado por Matthew Broderick
Ferris Bueller interpretado por Matthew Broderick

Not that I condone fascism, or any -ism for that matter. -Ism's in my opinion are not good. A person should not believe in an -ism, he should believe in himself Ferris Bueller, Curtindo a vida adoidado
 
Em 1990, a então primeira-dama dos Estados Unidos, Barbara Bush, dirigia-se a uma plateia de estudantes da Universidade Wellesley, em Massachusetts, quando resolveu expor aos presentes uma interessante visão filosófica sobre o mundo: “Encontrem a alegria na vida, porque como disse Ferris Bueller em seu dia de curtir a vida adoidado (on his day off –no original), ‘A vida se move muito rápido; se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perdê-la!’”
A esposa do presidente George Bush [pai] se referia à visão de mundo de Ferris Bueller, protagonista daquele que é considerado um dos maiores filmes adolescentes já produzidos: Curtindo a vida adoidado. Com uma estrutura narrativa simples, a obra nos leva ao dia em que Ferris, sua namorada Sloane e o neurótico amigo Cameron, decidem matar aula e sair para farrear nas ruas de Chicago.
O diretor John Hugues (1950-2009) vinha de uma série de obras-primas sobre a vida nos colégios americanos, já tendo rodado Mulher nota mil, O clube dos cinco e Gatinhas e gatões, além de ter escrito A garota de rosa shocking. Em todos os seus projetos, o cineasta buscou retratar a escola como um espaço no qual afloram os aspectos mais negativos do contrato social. Em A garota de rosa shocking, por exemplo, o colégio é um microcosmo exacerbado de tensões sociais, em que um singelo namoro entre uma garota pobre e um rapaz rico é alvo de maledicências e complôs. Em O clube dos cinco, cinco personagens, cada qual representativo de um estereótipo do colegial (o nerd, o encrenqueiro, a patricinha, o esportista e a maluca) são colocados numa sala de detenção ao longo de uma manhã. Lá descobrem uma profunda amizade e decidem lutar contra o preconceito de uma “sociedade” que quer separá-los em grupos e tribos isoladas.
Curtindo a vida adoidado talvez seja a mais iconoclasta das obras do diretor. Quase nada acontece no colégio e também este não parece representar qualquer obstáculo ou problema para o personagem. Ferris difere de todos os demais protagonistas masculinos escritos por Hughes, na medida em que sequer tenciona alterar ou questionar as regras sociais. Mas esse comportamento, longe de revelar certo conservadorismo da parte de Ferris, parece atentar para uma percepção libertária da realidade. As regras sociais não precisam ser alteradas para o nosso anti-herói porque bastaria quebrá-las. Ferris não passa por dilemas de consciência em nenhum momento da história. Ele não liga para a escola, para os pais ou qualquer sombra de responsabilidade, contrapondo-se ao amigo Cameron, constantemente preocupado com o que os outros (sociedade, professores, pais) irão pensar de suas atitudes.


Ser amoral
Ferris constituiria, portanto, a epítome do ser amoral. Em verdade, no decorrer de suas aventuras, o personagem interpretado por Matthew Broderick não prejudica ninguém objetivamente. Mas a essência de seu caráter reside na não-aquiescência das regras mínimas de conduta moral: ele finge estar gravemente doente, causando consternação em seus pais; desrespeita as regras mais fundamentais do colégio; causa, incidentalmente, a marginalização de sua irmã (preterida pelo fato de Ferris ser o centro das atenções), levando-a a um desespero atroz; e ironiza a validade intrínseca do próprio processo educativo. Essa última afirmação se sustenta no monólogo inicial do personagem, quando o mesmo esclarece aos expectadores que haverá um teste, no mesmo dia em que ele pretende matar aula. O tema da prova será 'Socialismo Europeu', o que leva Bueller a questionar: “Por que eu preciso estudar isso? Eu não sou europeu, eu não pretendo ir para a Europa. E daí que eles são socialistas? Eles poderiam ser fascistas-anarquistas que isso ainda não mudaria o fato de que eu não tenho um carro.”
Ferris, no entanto, não apenas menospreza as regras de conduta oficiais, aquelas emanadas pelo mundo dos adultos, como também negligencia as próprias “leis” do colégio. No decorrer do filme, entendemos que ele é amado por todas as tribos, sem integrar nenhuma delas. Mais do que isso, seu desprezo acaba por englobar o esforço coletivo dos alunos. O que Hugues tenta fazer é retratar a juventude norte-americana dos anos 80, como enunciado já nas primeiras cenas. Ao descobrirmos que ele forjou sua doença, logo somos induzidos a ver a imagem de um aparelho de TV, convenientemente sintonizado no canal hip da época: a MTV. O quarto do protagonista é repleto de pôsteres de bandas de rock da década, e somos inclusive apresentados a uma tomada de Ferris tomando banho, quando decide fazer um topete moicano com o shampoo, emulando os punks de então. Diferente da denúncia do consumismo, tão corrente nas críticas feitas à juventude dos anos Reagan, Hugues encontra na falta de perspectiva, limites e preocupação social, aquilo que seria a fonte de seus problemas e a poesia máxima de uma geração. Se, por um lado, os garotos e garotas dos anos 80, diferente de seus pais, não querem mudar o mundo, eles pelo menos querem aproveitá-lo ao máximo. Tratava-se a geração pós-baby boomer.
 
Ferris e o super-homem
Nascidos após a Segunda Guerra Mundial, os baby boomers foram os jovens do ciclo de manifestações de 1968, os que protestaram contra a Guerra do Vietnã, as ditaduras militares sul-americanas, e a linha dura soviética, em Praga. A eles coube o mérito de popularizarem, quando não de inventarem, o rock’n roll, de capitanear a revolução sexual e de inaugurar novas bandeiras políticas, como o direito das minorias, o desarmamento nuclear e a defesa do meio ambiente. Para Hugues, os filhos daqueles jovens cabeludos, que gritavam palavras de ordem em direção à Casa Branca, seriam exponencialmente mais subversivos. E nesse contexto, Ferris carregaria em si a quintessência da despreocupação juvenil, beirando a figura do super-homem de Nietzsche. Apresentado em seu trabalho Assim falou Zaratustra (publicado pela primeira vez em 1888), o super-homem seria o estágio mais avançado do indivíduo humano. Aquele que rejeita todos os princípios morais, que despreza a religião, os valores e a ciência. Para Nietzsche, o super-homem representaria o apogeu da liberdade, e a negação daquilo que seus contemporâneos viam como o progresso da espécie humana.
Não se trata aqui de sugerir que Hugues decidiu adaptar Assim falou Zaratustra para as telas de cinema, transformando a obra de filosofia em um filme para adolescentes, mas de identificar certos paralelos que ecoam na personalidade de Ferris. Vejamos seu amigo Cameron. Desde o início da película o jovem se configura na antítese do protagonista, sendo refém de uma hipocondria crônica e do medo de que seu pai descubra que ele afanou seu carro. Ao término do filme, ele e Ferris, por acidente, acabam jogando a Ferrari de um precipício.


A curva do personagem de Cameron está então completa. Seguindo todas as lições que lhe foram passadas por Ferris no decorrer do dia, o personagem não decide buscar a “salvação” por meio da consciência (atentando para o fato de que seus problemas são, em realidade, ínfimos, se comparados com o de milhões de outros jovens no mundo); ou mesmo buscar o respeito de seu pai por meio de um diálogo aberto e sincero. Ao final, Cameron vence o remorso, não sentindo qualquer culpa pelo que fez ao carro de seu pai. Chega a ser sugerido que ele e o pai “terão uma boa conversa mais tarde”, porém, o mais importante já foi atingido: tal qual Ferris, Cameron está também livre das amarras morais que o prendiam.
O próprio antagonista do filme, o diretor da escola Ed Rooney, carregaria em si a defesa intransigente da ordem, odiando o personagem de Ferris não por ele representar um risco à escola, mas por se recusar a seguir as regras sociais impostas sobre os alunos. O fato de Rooney continuamente perder Ferris de vista, enquanto o procura pelas ruas da metrópole, atesta para o absoluto abismo geracional dos anos 80: Rooney, um baby boomer, deduz que Ferris estará no fliperama com outros garotos. Chegando lá, cutuca o ombro de alguém de cabelo curto e jaqueta e dizendo “Agora eu te peguei!”. Para sua surpresa não só não é Ferris Bueller (que estava em um estádio de baseball) como a pessoa que ele cutucou era uma garota.
A obsessão do diretor para com Ferris se centra no fato daquele não comportar-se à ordem ideal, em que os alunos têm de ir para a escola, sem importar se eles estão gostando ou não de estar ali. Rooney segue as regras sociais, e é por isso que nunca conseguirá, de acordo com o filme, pôr as mãos em Bueller. Tamanha é a admiração que lhe é posta pelos colegas de classe, não só por isso, mas também por acharem que ele se encontra gravemente doente, que no decorrer da trama vemos o colégio, e depois a cidade, ser tomada por uma campanha publicitária instantânea (aquilo que nos anos 2000 chamaríamos de marketing viral) centrada na frase Save Ferris (Salvem Ferris). Nosso super-homem, entretanto, despreza mobilizações de qualquer tipo, como explicitado na frase que abre esta crítica, não dando nenhuma atenção ao carinho e admiração que lhe são conferidos pela massa. Na sequência final, acompanhamos Rooney, derrotado e maltrapilho, mancando até o ônibus escolar, seu único meio de transporte para a escola, onde o diretor lê na capa do caderno de uma criança a frase Save Ferris [salve Ferris]. Quem se dispõe a assistir ao filme até o fim dos créditos tem outra surpresa: Bueller aparece, quebrando mais uma vez aquilo que na linguagem cinematográfica se denomina “a quarta parede”. Ele olha diretamente para a câmera, ri da plateia e diz: “Vocês ainda estão aqui? Acabou! Vão pra casa!”.
Cabe aqui concluir com a reação subsequente à declaração de Barbara Bush na Universidade Wellesley. Após citar a filosofia de Bueller, o auditório irrompeu em aplausos, ao que a primeira-dama respondeu jocosamente “Eu não vou dizer ao George que vocês bateram palmas mais pelo Ferris do que por ele.” E Bueller, tal qual Zaratustra, no último capítulo da obra de Nietzsche, anuncia: “Esta é a minha alvorada; começa o meu dia: sobe, pois, sobre, Grande Meio-dia!”
publicada originalmente em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/a-filosofia-de-ferris-bueller Acessada em 27/12/2010.















segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A revista (não)VEJA é um besouro rola bosta, por Lenonardo Boff

 
[Infelizmente, já vi muitos professores universitários usarem a revista VEJA, não como fonte de estudo e pesquisa de sua visão torpe da realidade brasileira, mas como “fonte de informação” para se posarem como informados e sabichões. ainda assinam a revista para parecerem ainda mais interessados na “realidade brasileira”: parece um pesadelo, mas não é. ou melhor, o ambiente universitário tem muito de pesadelo. Agora, depois de tantas fazer, é o pensador Leonardo Boff que dirige algumas linhas ao famigerado semanal. segue o texto]
 
Oscar Niemeyer, a Veja online e o Escaravelho
Com a morte de Oscar Niemeyer aos 104 anos de idade ouviram-se vozes do mundo inteiro cheias de admiração, respeito e reverência face a sua obra genial, absolutamente inovadora e inspiradora de novas formas de leveza, simplicidade e elegância na arquitetura. Oscar Niemeyer foi e é uma pessoa que o Brasil e a humanidade podem se orgulhar.
E o fazemos por duas razões principais: a primeira, porque Oscar humildemente nunca considerou a arquitetura a coisa principal da vida; ela pertence ao campo da fantasia, da invenção e do lúdico. Para ele era um jogo das formas, jogado com a seriedade com que as crianças jogam.
A segunda, para Oscar, o principal era a vida. Ela é apenas um sopro, passageira e contraditória. Feliz para alguns mas para as grandes maiorias cruel e sem piedade. Por isso, a vida impõe uma tarefa que ele assumiu com coragem e com sérios riscos pessoais: a da transformação. E para transformar a vida e torná-la menos perversa, dizia, devemos nos dar as mãos, sermos solidários uns para com os outros, criarmos laços de afeto e de amorosidade entre todos. Numa palavra, nós humanos devemos aprender a nos tratar humanamente, sem considerar as classes, a cor da pele e o nível de sua instrução.
Isso foi que alimentou de sentido e de esperança a vida desse gênio brasileiro. Por aí se entende que escolheu o comunismo como a forma e o caminho para dar corpo a este sonho, pois, o comunismo, em seu ideário generoso, sempre se propôs a transformação social a partir das vítimas e dos mais invisíveis. Oscar Niemeyer foi um fiel militante comunista.
Mas seu comunismo era singular: no meu modo de ver, próximo dos cristãos originários pois era um comunismo ético, humanitário, solidário, doce, jocoso, alegre e leve. Foi fiel a esse sonho a vida inteira, para além de todos os avatares passados pelas várias formas de socialismo e de marxismo.
Na medida em que pudemos observar, a grande maioria da opinião pública mundial, foi unânime na celebração de sua arte e do significado humanista de sua vida. Curiosamente a revista VEJA de domingo, dedica-lhe 10 belas páginas. Outra coisa, porém, é a revista VEJA online de 7 de dezembro com um artigo do blog do jornalista Reinado Azevedo que a revista abriga.
Ele foi a voz destoante e de reles mau gosto. Até agora a VEJA não se distanciou daquele conteúdo, totalmente, contraditório àquele da edição impressa de domingo. Entende-se porque a ideologia de um é a ideologia do outro. Pouco importa que o jornalista Azevedo, de forma confusa, face às críticas vindas de todos os lados, procure se explicar. Ora se identifica com a revista, ora se distancia, mas finalmente seu blog é por ela publicado.
Notoriamente, VEJA se compraz em desfazer as figuras que melhor mostram nossa cultura e que mais penetraram na alma do povo brasileiro. Essa revista parece se envergonhar do Brasil, porque gostaria que ele fosse aquilo que não é e não quer ser: um xerox distorcido da cultura norte-americana. Ela dá a impressão de não amar os brasileiros, ao contrário expõe ao ridículo o que eles são e o que criam. Já o titulo da matéria referente a Oscar Niemeyer da autoria de Azevedo, revela seu caráter viciado e malevolente: "Para instruir a canalha ignorante. O gênio e o idiota em imagens". Seu texto piora mais ainda quando, se esforça, titubeante, em responder às críticas em seu blog do dia 8/12 também na VEJA online com um título que revela seu caráter despectivo e anti-democrático:"Metade gênio e metade idiota- Niemeyer na capa da VEJA com todas as honras! O que o bloco dos Sujos diz agora?" Sujo é ele que quer contaminar os outros com a própria sujeira de uma matéria tendenciosa e injusta.
O que se quer insinuar com os tipos de formulação usados? Que brasileiro não pode ser gênio; os gênios estão lá fora; se for gênio, porque lá fora assim o reconhecem, é apenas em sua terceira parte e, se melhor analisarmos, apenas numa quarta parte. Vamos e venhamos: Quem diz ser Oscar Niemeyer um idiota apenas revela que ele mesmo é um idiota consumado. Seguramente Azevedo está inscrito no número bem definido por Albert Einstein: "conheço dois infinitos: o infinito do universo e o infinito dos idiotas; do primeiro tenho dúvidas, do segundo certeza". O articulista nos deu a certeza que ele e a revista que o abriga possuem um lugar de honra no altar da idiotice.
O que não tolera em Oscar Niemeyer que, sendo comunista, se mostra solidário, compassivo com os que sofrem, que celebra a vida, exalta a amizade e glorifica o amor. Tais valores não cabem na ideologia capitalista de mercado, defendida por VEJA e seu albergado, que só sabe de concorrência, de "greed is good" (cobiça é coisa boa), de acumulação à custa da exploração ou da especulação, da falta de solidariedade e de justiça em nível internacional.
Mas não nos causa surpresa; a revista assim fez com Paulo Freire, Cândido Portinari, Lula, Dom Helder Câmara, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, frei Betto, João Pedro Stédile, comigo mesmo e com tantos outros. Ela é um monumento à razão cínica. Segue desavergonhadamente a lógica hegeliana do senhor e do servo; internalizou o senhor que está lá no Norte opulento e o serve como servo submisso, condenado a viver na periferia. Por isso tanto a revista quanto o articulista revelam um completo descompromisso com a verdade daqui, da cultura brasileira.
A figura que me ocorre deste articulista e da revista semanal, em versão online, é a do escaravelho, popularmente chamado de rola-bosta. O escaravelho é um besouro que vive dos excrementos de animais herbívoros, fazendo rolinhos deles com os quais, em sua toca, se alimenta. Pois algo semelhante fez o blog de Azevedo na VEJA online: foi buscar excrementos de 60 e 70 anos atrás, deslocou-os de seu contexto (ela é hábil neste método) e lançou-os contra Oscar Niemeyer. Ela o faz com naturalidade e prazer, pois, é o meio no qual vive e se realimenta continuamente. Nada de surpreendente, portanto.
Paro por aqui. Mas quero apenas registrar minha indignação contra esta revista, em versão online, travestida de escaravelho por ter cometido um crime lesa-fama. Reproduzo igualmente dois testemunhos indignados de duas pessoas respeitáveis: Antonio Veronese, artista plástico vivendo em Paris e João Cândido Portinari, filho do genial pintor Cândido Portinari, cujas telas grandiosas estão na entrada do edifício da ONU em Nova York e cuja imagem foi desfigurada e deturpada, repetidas vezes, pela revista-escaravelho.
Oscar Niemeyer e a imprensa tupiniquim - Antonio Veronese
Crítica mesquinha, que pune o Talento, essa ousadia imperdoável de alçar os cornos acima da manada. No Brasil, Talento, como em nenhum outro país do mundo, é indigerível por parte da imprensa, que se acocora, devorada por inveja intestina. Capitania hereditária de raivosos bufões que já classificou a voz de Pavarotti de ruído de pia entupida; a música de Tom Jobim de americanizada; João Gilberto de desafinado e Cândido Portinari de copista...
Quando morre um homem de Talento, como agora o grande Niemeyer, os raivosos bufões babam diante do espelho matinal sedentos de escárnio.

Não discuto a liberdade da imprensa. Mas a pergunta que se impõe é como um cidadão, com a dimensão internacional de Oscar Niemeyer, (sua morte foi reverenciada na primeira página de todos os grandes jornais do mundo) pode ser chamado, por um jornalista mequetrefe, num órgão de imprensa de cobertura nacional, de metade-gênio-metade idiota? Isso após sua morte, quando não é mais capaz de defender-se, e ainda que sob a desculpa covarde, de reproduzir citação de terceiros... O consolo que me resta é que a História desinteressa-se desses espasmos da estupidez. Quem se lembra hoje dos críticos da bossa nova ou de Villa-Lobos? Ao talent, no entanto, está reservada a reverência da eternidade.
Antonio Veronese
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Meu caro Antonio,
Que beleza o seu texto, um verdadeiro bálsamo para os que ainda acreditam no mundo de amanhã nascendo do espírito, da fé e do caráter dos homens de hoje!
Não é toda a imprensa, felizmente. Há também muita dignidade e valor na mídia brasileira. Mas não devemos nos surpreender com a revista semanal. Em termos de vileza, ela sempre consegue se superar. Ela terá, mais cedo ou mais tarde, o destino de todas as iniquidades: a vala comum do lixo, onde nem a história se dará o trabalho de julgá-la.
Os arquivos do Projeto Portinari guardam um sem número de artigos desta rancorosa revista, assim como de outras da mesma editora, sobre meu pai, Cândido Portinari e outros seus companheiros de geração. Sempre pérfidos, infames e covardes, como este que vem agora tentar apequenar um grande homem que para sempre enaltecerá a nossa terra e o nosso povo.
Caro amigo, é impossível ficar calado, diante de tanta indignidade.
Com o carinho e a admiração do
Professor João Candido Portinari (
portinari@portinari.org.br)