segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A juventude, a rainha e a revolução

[Quem tem medo de Maria Antonieta? ou melhor, que homem (hetero) não tem medo de uma inteligente, senhora de si, rica, jovem e bela? parece que vi alguns machos resmungando…? Provavelmente, para a maioria dos homens de sociedades conservadoras e tradicionais (caso do nosso sertão de cada dia, povoado de varões “desamparados intelectualmente”, para usar uma expressão do querido professor Eguimar Felício) somente os dois últimos adjetivos seriam bem vindos em uma mulher. Por sua vez, o filme Maria Antonieta poderia assustar não somente esses homens como vários outros ‘tipos’. Principalmente, aqueles que tem medo/preconceito da/com a juventude. Particularmente, a dimensão que mais gosto no filme é a estética juvenil apesar do filme tematizar um período histórico muito discutido nos bancos escolares: a Revolução Francesa. Outro elemento que muito me agradou foi o efeito causado pela sobreposição de uma narrativa histórica a uma trilha sonora contemporânea. Lembro-me da cena em que o casal real desce as escadarias ao som de um rock new wave oitentista. a cena, sem o áudio não teria a metade do impacto. Para além do risco do anacronismo (como alertaria os puristas professores de história de plantão, sacerdotes da ‘verdadeira’ história - que seria garantida pelo “acontecimento oficial/real”) esta opção da jovem diretora pode ser um elemento a contribuir para ganhar a atenção dos jovens de nosso tempo para uma história tão antiga quanto necessária de ser estudada: a história de uma jovem rainha – deslocada, angustiada e rica – às vésperas da Revolução Francesa. Outra dimensão do filme que deve ser ressaltada é o fato da personagem principal/atriz/diretora serem jovens e experienciar o mundo a partir de sua condição etária e cultural. A mulher que é sempre objeto de representação, é aqui sujeito; protagonista e não coadjuvante. A questão da representação da mulher no cinema é tão nuclear que originou o famoso teste (já postado anteriormente aqui) que ao propor três perguntas sobre a representação feminina na telona, comerciais ou não, revelam o quanto o cinema manipula sua imagem, atribuindo sentidos e delimitando a identidade feminina a ser seguida. Sem mais, deixo vocês outra vez na companhia do filósofo Vladimir Safatle e suas ricas e peculiares análises]
Maria Antonieta, por Vladimir Safatle
Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou um filme sobre Maria Antonieta. Ao contar a história da rainha juvenil que vivia de festa em festa enquanto o mundo desabava em silêncio, Coppola acabou por falar de sua própria geração.
Esta mesma que cresceu nos anos 1990.
No filme, há uma cena premonitória sobre nosso destino. Após acompanharmos a jovem Maria por festas que duravam até a manhã com trilhas de Siouxsie and the Ban-shees, depois de vermos sua felicidade pela descoberta do "glamour" do consumo conspícuo, algo estranho ocorre.
Maria Antonieta está agora em um balcão diante de uma massa que nunca aparece, da qual apenas ouvimos os gritos confusos. Uma massa sem representação, mas que agora clama por sua cabeça.
Maria Antonieta está diante do que não deveria ter lugar no filme, ou seja, da Revolução Francesa. Essa massa sem rosto e lugar é normalmente quem faz a história. Ela não estava nas raves, não entrou em nenhuma concept store para procurar o tênis mais stylish.
Porém ela tem a força de, com seus gritos surdos, fazer todo esse mundo desabar.
Talvez valha a pena lembrar disso agora porque quem cresceu nos anos 1990 foi doutrinado para repetir compulsivamente que tal massa não existia mais, que seus gritos nunca seriam mais ouvidos, que estávamos seguros entre uma rave, uma escapada em uma concept store e um emprego de "criativo" na publicidade.
Para quem cresceu com tal ideia na cabeça, é difícil entender o que 400 mil pessoas fazem nas ruas de Santiago, o que 300 mil pessoas gritam atualmente em Tel Aviv.
Por trás de palavras de ordem como "educação pública de qualidade e gratuita", "nós queremos justiça social e um Estado-providência", "democracia real" ou o impressionante "aqui é o Egito" ouvido (vejam só) em Israel, eles dizem simplesmente: o mundo que conhecemos acabou.
Enganam-se aqueles que veem em tais palavras apenas a nostalgia de um Estado de bem-estar social que morreu exatamente na passagem dos anos 1980 para 1990.
Essas milhares de pessoas dizem algo muito mais irrepresentável, a saber, todas as respostas são de novo possíveis, nada tem a garantia de que ficará de pé, estamos dispostos a experimentar algo que ainda não tem nome.
Nessas horas, vale a lição de Maria Antonieta: aqueles que não percebem o fim de um mundo são destruídos com ele. Há momentos na história em que tudo parece acontecer de maneira muito acelerada.
Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Curtir a vida é possível para ‘quem’?

[Segue, abaixo, o texto de alexandre leitão sobre o filme “Curtindo a vida adoidado” publicado originalmente na coluna Cine História do boletim eletrônico da Revista de História da Biblioteca Nacional. a análise não enfatiza outros elementos da linguagem cinematográfica além do conteúdo. mas, faz algo que todo historiador deve fazer: relacionar um fato (no caso o filme Curtindo a vida…) ao seu tempo (conjuntura social, econômica, cultural etc.). Para fazer isto, quanto mais erudição tivermos, mais a análise é recheada de interesse. boa leitura.]


A filosofia em Ferris Bueller, por Alexandre Enrique Leitão

[Texto sobre o filme Curtindo a vida adoidado (Ferris Bueller’s Day Off). EUA, 1986]



Ferris Bueller interpretado por Matthew Broderick
Ferris Bueller interpretado por Matthew Broderick

Not that I condone fascism, or any -ism for that matter. -Ism's in my opinion are not good. A person should not believe in an -ism, he should believe in himself Ferris Bueller, Curtindo a vida adoidado
 
Em 1990, a então primeira-dama dos Estados Unidos, Barbara Bush, dirigia-se a uma plateia de estudantes da Universidade Wellesley, em Massachusetts, quando resolveu expor aos presentes uma interessante visão filosófica sobre o mundo: “Encontrem a alegria na vida, porque como disse Ferris Bueller em seu dia de curtir a vida adoidado (on his day off –no original), ‘A vida se move muito rápido; se você não parar e olhar em volta de vez em quando, você pode perdê-la!’”
A esposa do presidente George Bush [pai] se referia à visão de mundo de Ferris Bueller, protagonista daquele que é considerado um dos maiores filmes adolescentes já produzidos: Curtindo a vida adoidado. Com uma estrutura narrativa simples, a obra nos leva ao dia em que Ferris, sua namorada Sloane e o neurótico amigo Cameron, decidem matar aula e sair para farrear nas ruas de Chicago.
O diretor John Hugues (1950-2009) vinha de uma série de obras-primas sobre a vida nos colégios americanos, já tendo rodado Mulher nota mil, O clube dos cinco e Gatinhas e gatões, além de ter escrito A garota de rosa shocking. Em todos os seus projetos, o cineasta buscou retratar a escola como um espaço no qual afloram os aspectos mais negativos do contrato social. Em A garota de rosa shocking, por exemplo, o colégio é um microcosmo exacerbado de tensões sociais, em que um singelo namoro entre uma garota pobre e um rapaz rico é alvo de maledicências e complôs. Em O clube dos cinco, cinco personagens, cada qual representativo de um estereótipo do colegial (o nerd, o encrenqueiro, a patricinha, o esportista e a maluca) são colocados numa sala de detenção ao longo de uma manhã. Lá descobrem uma profunda amizade e decidem lutar contra o preconceito de uma “sociedade” que quer separá-los em grupos e tribos isoladas.
Curtindo a vida adoidado talvez seja a mais iconoclasta das obras do diretor. Quase nada acontece no colégio e também este não parece representar qualquer obstáculo ou problema para o personagem. Ferris difere de todos os demais protagonistas masculinos escritos por Hughes, na medida em que sequer tenciona alterar ou questionar as regras sociais. Mas esse comportamento, longe de revelar certo conservadorismo da parte de Ferris, parece atentar para uma percepção libertária da realidade. As regras sociais não precisam ser alteradas para o nosso anti-herói porque bastaria quebrá-las. Ferris não passa por dilemas de consciência em nenhum momento da história. Ele não liga para a escola, para os pais ou qualquer sombra de responsabilidade, contrapondo-se ao amigo Cameron, constantemente preocupado com o que os outros (sociedade, professores, pais) irão pensar de suas atitudes.


Ser amoral
Ferris constituiria, portanto, a epítome do ser amoral. Em verdade, no decorrer de suas aventuras, o personagem interpretado por Matthew Broderick não prejudica ninguém objetivamente. Mas a essência de seu caráter reside na não-aquiescência das regras mínimas de conduta moral: ele finge estar gravemente doente, causando consternação em seus pais; desrespeita as regras mais fundamentais do colégio; causa, incidentalmente, a marginalização de sua irmã (preterida pelo fato de Ferris ser o centro das atenções), levando-a a um desespero atroz; e ironiza a validade intrínseca do próprio processo educativo. Essa última afirmação se sustenta no monólogo inicial do personagem, quando o mesmo esclarece aos expectadores que haverá um teste, no mesmo dia em que ele pretende matar aula. O tema da prova será 'Socialismo Europeu', o que leva Bueller a questionar: “Por que eu preciso estudar isso? Eu não sou europeu, eu não pretendo ir para a Europa. E daí que eles são socialistas? Eles poderiam ser fascistas-anarquistas que isso ainda não mudaria o fato de que eu não tenho um carro.”
Ferris, no entanto, não apenas menospreza as regras de conduta oficiais, aquelas emanadas pelo mundo dos adultos, como também negligencia as próprias “leis” do colégio. No decorrer do filme, entendemos que ele é amado por todas as tribos, sem integrar nenhuma delas. Mais do que isso, seu desprezo acaba por englobar o esforço coletivo dos alunos. O que Hugues tenta fazer é retratar a juventude norte-americana dos anos 80, como enunciado já nas primeiras cenas. Ao descobrirmos que ele forjou sua doença, logo somos induzidos a ver a imagem de um aparelho de TV, convenientemente sintonizado no canal hip da época: a MTV. O quarto do protagonista é repleto de pôsteres de bandas de rock da década, e somos inclusive apresentados a uma tomada de Ferris tomando banho, quando decide fazer um topete moicano com o shampoo, emulando os punks de então. Diferente da denúncia do consumismo, tão corrente nas críticas feitas à juventude dos anos Reagan, Hugues encontra na falta de perspectiva, limites e preocupação social, aquilo que seria a fonte de seus problemas e a poesia máxima de uma geração. Se, por um lado, os garotos e garotas dos anos 80, diferente de seus pais, não querem mudar o mundo, eles pelo menos querem aproveitá-lo ao máximo. Tratava-se a geração pós-baby boomer.
 
Ferris e o super-homem
Nascidos após a Segunda Guerra Mundial, os baby boomers foram os jovens do ciclo de manifestações de 1968, os que protestaram contra a Guerra do Vietnã, as ditaduras militares sul-americanas, e a linha dura soviética, em Praga. A eles coube o mérito de popularizarem, quando não de inventarem, o rock’n roll, de capitanear a revolução sexual e de inaugurar novas bandeiras políticas, como o direito das minorias, o desarmamento nuclear e a defesa do meio ambiente. Para Hugues, os filhos daqueles jovens cabeludos, que gritavam palavras de ordem em direção à Casa Branca, seriam exponencialmente mais subversivos. E nesse contexto, Ferris carregaria em si a quintessência da despreocupação juvenil, beirando a figura do super-homem de Nietzsche. Apresentado em seu trabalho Assim falou Zaratustra (publicado pela primeira vez em 1888), o super-homem seria o estágio mais avançado do indivíduo humano. Aquele que rejeita todos os princípios morais, que despreza a religião, os valores e a ciência. Para Nietzsche, o super-homem representaria o apogeu da liberdade, e a negação daquilo que seus contemporâneos viam como o progresso da espécie humana.
Não se trata aqui de sugerir que Hugues decidiu adaptar Assim falou Zaratustra para as telas de cinema, transformando a obra de filosofia em um filme para adolescentes, mas de identificar certos paralelos que ecoam na personalidade de Ferris. Vejamos seu amigo Cameron. Desde o início da película o jovem se configura na antítese do protagonista, sendo refém de uma hipocondria crônica e do medo de que seu pai descubra que ele afanou seu carro. Ao término do filme, ele e Ferris, por acidente, acabam jogando a Ferrari de um precipício.


A curva do personagem de Cameron está então completa. Seguindo todas as lições que lhe foram passadas por Ferris no decorrer do dia, o personagem não decide buscar a “salvação” por meio da consciência (atentando para o fato de que seus problemas são, em realidade, ínfimos, se comparados com o de milhões de outros jovens no mundo); ou mesmo buscar o respeito de seu pai por meio de um diálogo aberto e sincero. Ao final, Cameron vence o remorso, não sentindo qualquer culpa pelo que fez ao carro de seu pai. Chega a ser sugerido que ele e o pai “terão uma boa conversa mais tarde”, porém, o mais importante já foi atingido: tal qual Ferris, Cameron está também livre das amarras morais que o prendiam.
O próprio antagonista do filme, o diretor da escola Ed Rooney, carregaria em si a defesa intransigente da ordem, odiando o personagem de Ferris não por ele representar um risco à escola, mas por se recusar a seguir as regras sociais impostas sobre os alunos. O fato de Rooney continuamente perder Ferris de vista, enquanto o procura pelas ruas da metrópole, atesta para o absoluto abismo geracional dos anos 80: Rooney, um baby boomer, deduz que Ferris estará no fliperama com outros garotos. Chegando lá, cutuca o ombro de alguém de cabelo curto e jaqueta e dizendo “Agora eu te peguei!”. Para sua surpresa não só não é Ferris Bueller (que estava em um estádio de baseball) como a pessoa que ele cutucou era uma garota.
A obsessão do diretor para com Ferris se centra no fato daquele não comportar-se à ordem ideal, em que os alunos têm de ir para a escola, sem importar se eles estão gostando ou não de estar ali. Rooney segue as regras sociais, e é por isso que nunca conseguirá, de acordo com o filme, pôr as mãos em Bueller. Tamanha é a admiração que lhe é posta pelos colegas de classe, não só por isso, mas também por acharem que ele se encontra gravemente doente, que no decorrer da trama vemos o colégio, e depois a cidade, ser tomada por uma campanha publicitária instantânea (aquilo que nos anos 2000 chamaríamos de marketing viral) centrada na frase Save Ferris (Salvem Ferris). Nosso super-homem, entretanto, despreza mobilizações de qualquer tipo, como explicitado na frase que abre esta crítica, não dando nenhuma atenção ao carinho e admiração que lhe são conferidos pela massa. Na sequência final, acompanhamos Rooney, derrotado e maltrapilho, mancando até o ônibus escolar, seu único meio de transporte para a escola, onde o diretor lê na capa do caderno de uma criança a frase Save Ferris [salve Ferris]. Quem se dispõe a assistir ao filme até o fim dos créditos tem outra surpresa: Bueller aparece, quebrando mais uma vez aquilo que na linguagem cinematográfica se denomina “a quarta parede”. Ele olha diretamente para a câmera, ri da plateia e diz: “Vocês ainda estão aqui? Acabou! Vão pra casa!”.
Cabe aqui concluir com a reação subsequente à declaração de Barbara Bush na Universidade Wellesley. Após citar a filosofia de Bueller, o auditório irrompeu em aplausos, ao que a primeira-dama respondeu jocosamente “Eu não vou dizer ao George que vocês bateram palmas mais pelo Ferris do que por ele.” E Bueller, tal qual Zaratustra, no último capítulo da obra de Nietzsche, anuncia: “Esta é a minha alvorada; começa o meu dia: sobe, pois, sobre, Grande Meio-dia!”
publicada originalmente em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/a-filosofia-de-ferris-bueller Acessada em 27/12/2010.















segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A revista (não)VEJA é um besouro rola bosta, por Lenonardo Boff

 
[Infelizmente, já vi muitos professores universitários usarem a revista VEJA, não como fonte de estudo e pesquisa de sua visão torpe da realidade brasileira, mas como “fonte de informação” para se posarem como informados e sabichões. ainda assinam a revista para parecerem ainda mais interessados na “realidade brasileira”: parece um pesadelo, mas não é. ou melhor, o ambiente universitário tem muito de pesadelo. Agora, depois de tantas fazer, é o pensador Leonardo Boff que dirige algumas linhas ao famigerado semanal. segue o texto]
 
Oscar Niemeyer, a Veja online e o Escaravelho
Com a morte de Oscar Niemeyer aos 104 anos de idade ouviram-se vozes do mundo inteiro cheias de admiração, respeito e reverência face a sua obra genial, absolutamente inovadora e inspiradora de novas formas de leveza, simplicidade e elegância na arquitetura. Oscar Niemeyer foi e é uma pessoa que o Brasil e a humanidade podem se orgulhar.
E o fazemos por duas razões principais: a primeira, porque Oscar humildemente nunca considerou a arquitetura a coisa principal da vida; ela pertence ao campo da fantasia, da invenção e do lúdico. Para ele era um jogo das formas, jogado com a seriedade com que as crianças jogam.
A segunda, para Oscar, o principal era a vida. Ela é apenas um sopro, passageira e contraditória. Feliz para alguns mas para as grandes maiorias cruel e sem piedade. Por isso, a vida impõe uma tarefa que ele assumiu com coragem e com sérios riscos pessoais: a da transformação. E para transformar a vida e torná-la menos perversa, dizia, devemos nos dar as mãos, sermos solidários uns para com os outros, criarmos laços de afeto e de amorosidade entre todos. Numa palavra, nós humanos devemos aprender a nos tratar humanamente, sem considerar as classes, a cor da pele e o nível de sua instrução.
Isso foi que alimentou de sentido e de esperança a vida desse gênio brasileiro. Por aí se entende que escolheu o comunismo como a forma e o caminho para dar corpo a este sonho, pois, o comunismo, em seu ideário generoso, sempre se propôs a transformação social a partir das vítimas e dos mais invisíveis. Oscar Niemeyer foi um fiel militante comunista.
Mas seu comunismo era singular: no meu modo de ver, próximo dos cristãos originários pois era um comunismo ético, humanitário, solidário, doce, jocoso, alegre e leve. Foi fiel a esse sonho a vida inteira, para além de todos os avatares passados pelas várias formas de socialismo e de marxismo.
Na medida em que pudemos observar, a grande maioria da opinião pública mundial, foi unânime na celebração de sua arte e do significado humanista de sua vida. Curiosamente a revista VEJA de domingo, dedica-lhe 10 belas páginas. Outra coisa, porém, é a revista VEJA online de 7 de dezembro com um artigo do blog do jornalista Reinado Azevedo que a revista abriga.
Ele foi a voz destoante e de reles mau gosto. Até agora a VEJA não se distanciou daquele conteúdo, totalmente, contraditório àquele da edição impressa de domingo. Entende-se porque a ideologia de um é a ideologia do outro. Pouco importa que o jornalista Azevedo, de forma confusa, face às críticas vindas de todos os lados, procure se explicar. Ora se identifica com a revista, ora se distancia, mas finalmente seu blog é por ela publicado.
Notoriamente, VEJA se compraz em desfazer as figuras que melhor mostram nossa cultura e que mais penetraram na alma do povo brasileiro. Essa revista parece se envergonhar do Brasil, porque gostaria que ele fosse aquilo que não é e não quer ser: um xerox distorcido da cultura norte-americana. Ela dá a impressão de não amar os brasileiros, ao contrário expõe ao ridículo o que eles são e o que criam. Já o titulo da matéria referente a Oscar Niemeyer da autoria de Azevedo, revela seu caráter viciado e malevolente: "Para instruir a canalha ignorante. O gênio e o idiota em imagens". Seu texto piora mais ainda quando, se esforça, titubeante, em responder às críticas em seu blog do dia 8/12 também na VEJA online com um título que revela seu caráter despectivo e anti-democrático:"Metade gênio e metade idiota- Niemeyer na capa da VEJA com todas as honras! O que o bloco dos Sujos diz agora?" Sujo é ele que quer contaminar os outros com a própria sujeira de uma matéria tendenciosa e injusta.
O que se quer insinuar com os tipos de formulação usados? Que brasileiro não pode ser gênio; os gênios estão lá fora; se for gênio, porque lá fora assim o reconhecem, é apenas em sua terceira parte e, se melhor analisarmos, apenas numa quarta parte. Vamos e venhamos: Quem diz ser Oscar Niemeyer um idiota apenas revela que ele mesmo é um idiota consumado. Seguramente Azevedo está inscrito no número bem definido por Albert Einstein: "conheço dois infinitos: o infinito do universo e o infinito dos idiotas; do primeiro tenho dúvidas, do segundo certeza". O articulista nos deu a certeza que ele e a revista que o abriga possuem um lugar de honra no altar da idiotice.
O que não tolera em Oscar Niemeyer que, sendo comunista, se mostra solidário, compassivo com os que sofrem, que celebra a vida, exalta a amizade e glorifica o amor. Tais valores não cabem na ideologia capitalista de mercado, defendida por VEJA e seu albergado, que só sabe de concorrência, de "greed is good" (cobiça é coisa boa), de acumulação à custa da exploração ou da especulação, da falta de solidariedade e de justiça em nível internacional.
Mas não nos causa surpresa; a revista assim fez com Paulo Freire, Cândido Portinari, Lula, Dom Helder Câmara, Chico Buarque, Tom Jobim, João Gilberto, frei Betto, João Pedro Stédile, comigo mesmo e com tantos outros. Ela é um monumento à razão cínica. Segue desavergonhadamente a lógica hegeliana do senhor e do servo; internalizou o senhor que está lá no Norte opulento e o serve como servo submisso, condenado a viver na periferia. Por isso tanto a revista quanto o articulista revelam um completo descompromisso com a verdade daqui, da cultura brasileira.
A figura que me ocorre deste articulista e da revista semanal, em versão online, é a do escaravelho, popularmente chamado de rola-bosta. O escaravelho é um besouro que vive dos excrementos de animais herbívoros, fazendo rolinhos deles com os quais, em sua toca, se alimenta. Pois algo semelhante fez o blog de Azevedo na VEJA online: foi buscar excrementos de 60 e 70 anos atrás, deslocou-os de seu contexto (ela é hábil neste método) e lançou-os contra Oscar Niemeyer. Ela o faz com naturalidade e prazer, pois, é o meio no qual vive e se realimenta continuamente. Nada de surpreendente, portanto.
Paro por aqui. Mas quero apenas registrar minha indignação contra esta revista, em versão online, travestida de escaravelho por ter cometido um crime lesa-fama. Reproduzo igualmente dois testemunhos indignados de duas pessoas respeitáveis: Antonio Veronese, artista plástico vivendo em Paris e João Cândido Portinari, filho do genial pintor Cândido Portinari, cujas telas grandiosas estão na entrada do edifício da ONU em Nova York e cuja imagem foi desfigurada e deturpada, repetidas vezes, pela revista-escaravelho.
Oscar Niemeyer e a imprensa tupiniquim - Antonio Veronese
Crítica mesquinha, que pune o Talento, essa ousadia imperdoável de alçar os cornos acima da manada. No Brasil, Talento, como em nenhum outro país do mundo, é indigerível por parte da imprensa, que se acocora, devorada por inveja intestina. Capitania hereditária de raivosos bufões que já classificou a voz de Pavarotti de ruído de pia entupida; a música de Tom Jobim de americanizada; João Gilberto de desafinado e Cândido Portinari de copista...
Quando morre um homem de Talento, como agora o grande Niemeyer, os raivosos bufões babam diante do espelho matinal sedentos de escárnio.

Não discuto a liberdade da imprensa. Mas a pergunta que se impõe é como um cidadão, com a dimensão internacional de Oscar Niemeyer, (sua morte foi reverenciada na primeira página de todos os grandes jornais do mundo) pode ser chamado, por um jornalista mequetrefe, num órgão de imprensa de cobertura nacional, de metade-gênio-metade idiota? Isso após sua morte, quando não é mais capaz de defender-se, e ainda que sob a desculpa covarde, de reproduzir citação de terceiros... O consolo que me resta é que a História desinteressa-se desses espasmos da estupidez. Quem se lembra hoje dos críticos da bossa nova ou de Villa-Lobos? Ao talent, no entanto, está reservada a reverência da eternidade.
Antonio Veronese
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Meu caro Antonio,
Que beleza o seu texto, um verdadeiro bálsamo para os que ainda acreditam no mundo de amanhã nascendo do espírito, da fé e do caráter dos homens de hoje!
Não é toda a imprensa, felizmente. Há também muita dignidade e valor na mídia brasileira. Mas não devemos nos surpreender com a revista semanal. Em termos de vileza, ela sempre consegue se superar. Ela terá, mais cedo ou mais tarde, o destino de todas as iniquidades: a vala comum do lixo, onde nem a história se dará o trabalho de julgá-la.
Os arquivos do Projeto Portinari guardam um sem número de artigos desta rancorosa revista, assim como de outras da mesma editora, sobre meu pai, Cândido Portinari e outros seus companheiros de geração. Sempre pérfidos, infames e covardes, como este que vem agora tentar apequenar um grande homem que para sempre enaltecerá a nossa terra e o nosso povo.
Caro amigo, é impossível ficar calado, diante de tanta indignidade.
Com o carinho e a admiração do
Professor João Candido Portinari (
portinari@portinari.org.br)

























quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Cinema das massas, consciência crítica e dinossauros

[Segue convite para a palestra O cinema do feitiço contra o feiticeiro: cinema de massa e crítica da sociedade, por Leonardo Carmo seguida de lançamento de seu livro homônimo (publicado pela PUC-GO). Abaixo, o simpático e-mail do autor seguido de divertidíssimos comentários, tão verdadeiros quanto cinematográficos. Agradeço pelo material de divulgação enviado pelo querido historiador e sempre professor Antônio Luiz de Souza, ou “Lwyzx”, para os iniciados]

Mensagem original de: Leonardo Carmo < leonardo.carmo@gmail.com >
Caríssimos amigos/amigas, em anexo o convite. Espero que possam comparecer. Peço divulgação junto aos conhecidos. Vamos fazer uma festa bonita! Abaixo comentários sobre a obra ao redor do mundo.
Grato.
leonardo carmo.

Capturar

O livro
 
cinemadofeitico
 
Comentários:
“Se nascido em Liverpool,  Leonardo Carmo teria sido o 5º Beatle”. Paul McCartney, em comunicado da Apple.
“Dinossauros do mundo, uni-vos”. Karl Marx, em manifestação na Praça Vermelha, Moscou
“Leonardo é um charmoso dinossauro da terceira idade”, Jane Fonda, em entrevista na Casa dos Artistas de Iowa, USA.
“Por que eu não escrevi este livro?”, Paulo Coelho, do Tibete
“Caramba, nem eu sabia ter realizado um filme tão bacana. Thanks man", S. Spielberg, rodando filme na Ilha do Bananal
“Gostei muito. Vou gravar”, 'Amado Batista
“Nunca em uma única obra, tanta guerra e tanta paz!”, Leon Tolstoi, escritor e camponês russo
“Leonardo autografou este livro na Basílica de São Pedro. Sucesso extraordinário”, Papa Bento XVI
“Excitante, sensual, perigoso. Compre e leia. Logo será proibido”, Carlos Zéfiro, quadrinista
“Obra de um dragão! Este livro veio aquecer ainda mais a economia da China”, Xi Jinping, seretário geral-geral do PC-chinês.
“Gostaria de ser dirigido por Leonardo Carmo em um filme”, Leonardo Di Caprio, ator.
“Eu não quero ser um camelão. Eu quero ser Leonardo Carmo”, David Bowie, rockstar
 
Vídeo de divulgação


Matéria publicada no jornal O Popular
06.11.2012 O Popular-Magazine-Cinema e educacao na era dos Dinossauros
 
Texto do autor
O cinema do feitiço contra o feiticeiro é um dialogo com o ensaio – a obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica - do filosofo alemão Walter Benjamin . Recentemente esse ensaio recebeu tradução direto do alemão para o português em edição da Editora Zouk, com apresentação, tradução e notas do professor Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado que recomendo a todos os interessados na problemática da arte no contexto da industria cultural. Meu dialogo baseia-se em outra tradução mas ao ler essa do professor Francisco me senti feliz pq percebi que intuitivamente que meu dialogo está no contexto dessa bela tradução. Ou seja, creio ter mesmo entendido o núcleo desse ensaio. No Brasil foi publicado uma tradução em 1968, a qual eu li e descobri que Glauber Rocha também a leu ele cita esse ensaio em Revolução do Cinema Novo e eu comento isso em livro que espero ser editado aqui em Goiânia e cujo título é O Cinema da Metafísica Bárbara onde analiso filmes experimentais, o oposto do Cinema do Feitiço, mas com base em Walter Benjamin, numa coletânea que eu chamo A historia no cemitério dos sonhos dialogando com outros textos de Benjamin. A história da recepção desse ensaio é complicada e não vamos historicizá-la nessa tarde. Mas essa tradução é particularmente valiosa porque se trata de uma das versões, a de 1936, aquele que o autor considerava mais apropriada de ser publicada. Portanto, nesse momento da terceira guerra mundial esse espetáculo é um manual de resistência contra as atuais formas do nazi-fascismo que domina a política, a economia, a técnica, a cultura, a educação e os meios de comunicação, entre eles, o cinema. Meu livro é sobre o cinema como um instrumento de combate ao fascismo. As formas totalitárias da existência que vão do fast-food a fenômenos financeiros como o de Marck Zuckberg, criador do Facebook, uma ferramenta que deveria ser analisada do ponto de vista das técnicas de reprodução assim como todas as outras redes sociais. O ensaio é um desafio à capacidade de análise e investigação da exploração do homem pelo homem no contexto da globalização.
Assim, antes de iniciar, vou dar duas linhas de notas biográficas minhas. Eu sou de Campinas. Estudei nos Cines Campinas e Eldorados. Fui aluno do primeiro poeta urbano de Goiânia Newton Rodrigues, o Escurinho, um negro marginalizado que criou uma sub-cultura e transformou Campinas em um espaço imagético poderoso, sem o qual eu não poderia pensar o que penso. Uma cineasta de Goiania, Claudia, Nunes, muito bacana, fez um documentário sobre o Escurinho e o Mauricinho Hippie, os subversivos e visionários goianienses, dois poetas extraordinários, como Rimbaud e Paul Verlaine. Não tem muito a ver o Escurinho e o Mauricinho. Conheci muito bem os dois e em janeiro desse ano conversei com o Mauricinho e ele me disse que Claudia foi corajosa pq ela fez um filme sobre o Deus e o Diabo na Serra Dourada, um filho de Nelson Mandela Com Clementina de Jesus e outro filho de Cora Coralina com Lampião. Estou dando a vocês o mapa goiano, a zona erógena, a libido do sertão goiano. Antes de Escurinho e Mauricinho os maiores poetas são Amado Batista e Odair José. A dialética do brega não é para qq um. Se Jacques Lacan estivesse na mesa talvez concordasse comigo. Ou iríamos para o pau os dois. Amado e Odair são poetas extraordinários. Deveriam ser convidados para integrar a Academia Goiana de Letras. O que pode parecer non-sense para vocês, é antropofagia pura. Eu comi Oswald de Andrade com pequi. Antes de ler Benjamin, eu estive nessa praia sem mencionar Brasão, Brasãozinho e Loló ou as Irmãs Galvão e claro, Marrequinho. Curto Schoberg mas adoro uma Folia de Reis.
Sobre o livro, objetivamente, procuro responder uma pergunta: é possível construir uma consciência crítica a partir do cinema de massa? Esse é o oco onde perpassa meu raciocínio no livro. O conceito de massa é complicado. Em “A rebelião das massas”, José Ortega y Gasset no capítulo “Quem Mando no Mundo” observa que a denominação “ Idade Moderna” é nome nebuloso e inexpressivo sob o qual se esconde esta realidade: época da hegemonia européia. Agora, deixe que venha à tona em todos vocês o seu inconsciente brega e perceberão que o brega é superior à Europa. Outra referencia fundamental é “Massa e Poder”, Elias Canetti, que narra sobre o mandar e obedecer, matar e sobreviver, medo e voracidade, paranóia e poder. Massa é um conceito difícil, eu disse. Eu entro nessa discussão de carro-de-boi. É o meu veículo. Sem falar nos estudos de Siegried Krakauer sobre o cinema alemão dos anos 1920 e o seu ensaio Ornamento de Massa. Isso é para dar uma vaga idéia da caixa de marimbondos em que se insere o meu livro.
Eu evito uma discussão indispensável, claro, mas que não me interessa. Se a industria cultural permite a existência de uma arte autônoma, se existe arte com aura, arte sem aura, eu vou para uma ataque positivo: o cinema de massa pode sim emancipar, criticar, apontar rumos para o pensamento revolucionário, transformador, pode mostrar ao explorado e alimenta a própria exploração. Meu método de análise baseia-se nas teses sobe as tendências do desenvolvimento da arte sob as condições atuais de produção, cuja dialética não é menos perceptível na superestrutura do que na economia. Benjamin diz que para analisar uma obra de arte na época de suas técnicas de reprodução voce tem de largar mão de conceitos tradicionais como – criatividade e genialidade, valor de eternidade e mistério. Dizer que a Ana Maria Pacheco é genial ou que o Siron Franco é mágico nada diz de suas obras, antes, esconde o teor explosivo dessas obras. Podemos falar disso se quiserem, mais tarde. Fui ver Ana Maria Pacheco na Pinacoteca e fiquei sem dormir. Ela é mais assustadora que o Stephen King e o Zé do Caixão! O Zé do Caixão projeta Museu de 1 milhão reais em Sampa. Deveríamos construir um museu de 2 mi de reais para a obra de Ana Maria Pacheco aqui. A sua obra, se entendi, está próxima das formulações sobre as teses da filosofia da história do Benjamin. O Jurassic Park para mim é um espaço de redenção das massas. Benjamin fala de uma massa proletária com consciência de classe – entender isso no contexto dos anos 1930 – e de uma massa manipulada, nesse contexto que mencionei que é a pequena burguesia que vive espremida entre a burguesia e o proletariado. Hoje, é esse publico consumidor de Telenovelas e do BBB, e a inserção de massas analfabetas politicamente falando ungindo um ídolo que em nome do consumo e jogando as massas no mercado, trai essa massa, porque não mexe nas relações de propriedade, daí também, a rebelião das massas prisionais jogadas ao acaso, como todo o País está jogado, massa com acesso ao crediário das concessionárias, comprando no Ponto Frio do Shopping Interlagos – uma espécie de Bangoc – e nas Casas Marabraz e Baía. Eu analiso o Jurassic Park com os conceitos criados por Walter Benjamin. Essa é a novidade. Pode ser ruim. Mas é melhor o novo ruim que o velho bom.























quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O Grande Ditador (dir. Charles Chaplin, 1940)

GRANDE DITADOR. (Great Dictator, The).  

 

Dir.: Charles Chaplin[i]. Local/Origem: EUA. Data: 1940. Duração: 124’ (2h4’). Produtor: Roteirista: Charles Chaplin Montador: Fotógrafo: Cenografista: Produtora: Gênero: Comédia/Drama/Guerra Tipo: Longa metragem
 
Elenco: Charles Chaplin (Adenoid Hynkel / Barbeiro judeu), Paulette Goddard (Hannah), Jack Oakie (Benzino Napaloni), Reginald Gardiner (Comandante Schultz), Henry Daniell (Garbitsch), Billy Gilbert (Marechal Herring), Grace Hayle (Madame Napaloni), Carter DeHaven (Spook (embaixador bacteriano), Maurice Moscovitch (Sr. Jaeckel), Emma Dunn (Sra. Jaeckel), Bernard Gorcey (Sr. Mann), Paul Weigel (Sr. Agar).


 
Sinopse/Enredo: O filme começa durante a Primeira Guerra Mundial. Chaplin é um cadete do exército da nação fictícia da Tomânia e tenta salvar um soldado chamado Schultz (Reginald Gardiner). O personagem de Chaplin perde a memória quando seu avião colide com uma árvore. Schultz escapa das ferragens, e Chaplin passa seus próximos vinte anos no hospital, enquanto muitas mudanças acontecem: Adenoid Hynkel (também interpretado por Chaplin), agora o grande ditador da Tomânia, perseguia judeus com a ajuda dos ministros Garbitsch (Henry Daniell) e Herring (Billy Gilbert). Curado, mas ainda com amnésia, Chaplin retorna à sua barbearia no gueto judeu, ainda sem saber da situação política. O barbeiro fica chocado quando tropas quebram a janela de sua loja. Encontra, depois, Hannah, uma linda moradora do gueto. Enquanto isso, Schultz, que recebeu várias promoções nesses vinte anos, reconhece o barbeiro e dá ordens às tropas de deixá-lo em paz. Hynkel tenta diminuir a repressão aos judeus quando uma oportunidade de negócios com um rico empresário judeu surge. Hynkel começa a ficar obcecado com poder, e aspira a dominação mundial. Eventualmente, o empresário judeu recusa o acordo, e Hynkel reinstaura a perseguição aos judeus. Schultz é contra a invasão ao gueto que Hynkel está planejando. O ditador manda o general para um campo de concentração. Schultz foge para o gueto e começa a planejar junto com os outros moradores do lugar uma forma de tirar Adenóide Hynkel do poder. No fim, ambos (Schultz e seu amigo barbeiro) são presos. Hynkel tenta conseguir o apoio de Benzino Napaloni (Jack Oakie), ditador de Bactéria, para ajudá-lo na invasão de Osterlich. Depois de muitos conflitos (incluindo guerra de comida) entre os líderes, a invasão ocorre com sucesso. Hannah, que tinha fugido para Osterlich com seu pai, mais uma vez se encontra encurralada pelo regime de Hynkel. Schultz e o barbeiro escapam do campo de concentração usando uniformes de soldados. Guardas confundem o barbeiro com o ditador Hynkel (com quem ele se parece muito). Ao mesmo tempo, Hynkel é preso pelos seus próprios soldados que acreditam que se trata do barbeiro. O barbeiro, assumindo a identidade de Hynkel, é levado para a capital da Tomânia, para um discurso de vitória. Tal discurso é o total oposto das idéias anti-semitas de Hynkel, expõem idéias democráticas há muito na cabeça do barbeiro. Hannah ouve a voz do barbeiro no rádio, e fica surpresa quando ele se dirige a Hannah.



Prêmios: Oscar de melhor ator, 1940.

Informações de apoio:
Irônico e atrevido, este filme lhe causou sua expulsão dos Estados Unidos, mas criou também uma obra-prima única com uma das melhores mensagens anti-guerra já transmitidas ao homem. O filme foi censurado em vários países, inclusive nas telas do Brasil. O filme deixou Hitler furioso, numa fase em que EUA e Alemanha ainda mantinham relações diplomáticas;
Em 1938, ocorreu uma série de ataques por parte dos nazistas sobre sinagogas e lojas de judeus situadas na Alemanha, fato que ficou conhecido como a “Noite dos Cristais”; perante essa notícia, Charles Chaplin ridicularizou Hitler através do filme “O Grande Ditador”, de 1940.
Adenóide Hynkel e Benzino Napaloni são paródias a Adolf Hitler e Benito Mussolini, respectivamente. O nome de Napaloni é também uma vaga referência a Napoleão Bonaparte. A terra de Osterlich referencia a Áustria, cujo nome em alemão é Österreich.
A famosa cena em que Adenóide Hynkel dança com o globo terrestre foi usada na abertura da telenovela O Dono do Mundo, de Gilberto Braga, em 1991.
A música ouvida na cena onde Hynkel dança com o globo é da ópera Lohengrin, de Richard Wagner.
No momento em que o Barbeiro Judeu faz a barba do careca e faz toda aquela coreografia toca a 5ª dança húngara de Brahms.


 

O Grande Ditador, por João Luís de Almeida Machado[1].
 
Charles Chaplin é considerado por muitos como o maior gênio da sétima arte. Mesmo tendo vivido no início do século XX e produzido a maioria dos seus filmes até 1950, o criador de Carlitos continua sendo comentado, reprisado e endeusado por um enorme número de fiéis seguidores. Não é para menos, suas obras (como "Tempos Modernos", "Em busca do Ouro", "O Garoto", "O Circo", "Luzes da Cidade" e "O Grande Ditador") não perderam seu valor com o passar do tempo, continuam encantando platéias dos quatro cantos do mundo e, acima de tudo, mostraram-se tão grandiosas que suas tramas não se inscreveram apenas como registros do período em que foram feitos os filmes, ultrapassaram essa barreira. Lembrem-se do filme "Tempos Modernos" (já comentado nas colunas de Cinema e Educação) e vejam como Chaplin, em sua crítica a sociedade contemporânea, de bases industriais já não estava, com suas gags e paródias antevendo o stress, as correrias típicas de nosso cotidiano, os sistemas de trabalho onde os homens são apenas engrenagens adicionais ao trabalho das máquinas! Em "O Grande Ditador", Chaplin antecipou o fenômeno Hitler na Alemanha, através de uma contundente sátira ao nazi-fascismo e um surpreendente clamor pela paz. Não compreendido pelos americanos acabou tendo que se retirar do país e se estabeleceu na Suíça. Uma grande perda pois, na Europa, tolhido dos meios e dos recursos necessários para seu trabalho e um tanto quanto descrente na indústria e no mundo, sua produção declinou e rareou. [...]. É desse filme a célebre seqüência em que Hynkel dança com o globo terrestre em suas mãos numa suave alusão ao desejo de comandar os destinos do planeta. Há várias tiradas no filme que demonstram o quanto Chaplin estava sintonizado com o que ocorria no planeta, nessas seqüências, por exemplo, menciona-se o arianismo e a estranha condição do ditador moreno comandando o futuro de Tomânia. Outro detalhe interessante se refere a idéia de que uma das principais formas de se obter o apoio do povo se dava a partir da manipulação da opinião pública com o auxílio de propaganda pesada nos meios de comunicação ou com desfiles militares. Um outro personagem destacado que aparece nessa trama é um sósia do ditador italiano Mussolini, que também tem pretensões expansionistas. Diferentemente da história, em que os destinos da Itália e da Alemanha se cruzam, os dois líderes são concorrentes e não estão dispostos a se associar. A história sofre uma reversão quando Hynkel e o barbeiro judeu trocam de lugar, acidentalmente. Isso abre uma oportunidade sem igual para que os erros do verdadeiro ditador sejam reparados pela ação nobre do pobre e perseguido barbeiro. [..] Permite que se façam redações com temáticas voltadas para os conflitos, abre possibilidade de se discutir ações em favor da paz, nos mostra que através da arte podemos estimular ações de benefício para a humanidade, nos convida a estudar a 2ª Guerra e suas motivações, a entender os fatores que fizeram com que grande número de pessoas morresse naquele conflito e as razões que nos movem a nunca mais promover tamanho genocídio. Imperdível! 
 
[1] Doutor em Educação PUC-SP; Autor de "Na Sala de Aula com a Sétima Arte: aprendendo com o Cinema" (Editora Intersubjetiva).


O discurso

 


Ao final do filme, o personagem de Chaplin discursa. O texto é uma defesa apaixonada da democracia e do direito à vida em abundância. Além de demonstrar a sintonia de sua consciência crítica com as necessidades de seu presente histórico, faz uma defesa dos direitos humanos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Segue:
 
"Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. 
Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos. Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim.
Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. 
Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades. 
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. 
Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido. 

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. 
Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. 
E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá. Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! 
Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! 
E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos! Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! 
No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. 
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

(segue o estrondoso aplauso da multidão. Então, dirige-se a Hannah)
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!."




 

[i] Canto ao Homem do Povo - Charles Chaplin, por Carlos Drummond de Andrade:
I
Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,
era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,
era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.
Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.
Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens - e te descobriram e salvaram-se.
Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.
E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

II
A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.
És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.
Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.
E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas eálgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. O rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.
E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar - cuidado! - que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.
III
Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras do teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.
Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.
Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.
Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.
IV
O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,
mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão a cabana se faz lua.
Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo o desejo, na noite, de comunicação.
Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.
Então encaminhas no gelo e rondas o grito.
Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os copos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite... e não te vêem,
tu pequeno, tu simples, tu qualquer.
Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.
V
Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.
Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos

VI
Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.
Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.
O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.
Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.
E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.

























































































































































































































































terça-feira, 13 de novembro de 2012

Danton: o processo da Revolução (dir. Andrzej Wajda, 1982)


[A seguir, publico uma série de documentos utilizados para preparar uma aula sobre a Revolução Francesa, para o curso de História Contemporânea. O curso foi oferecido, de setembro a dezembro de 2012, para a graduação especial para formação de professores em História, da Plataforma Paulo Freire/CAPES, na UNEB/Campus Barreiras. O primeiro deles é o clássico texto do historiador estadunidense e especialista em Revolução Francesa, Robert Darnton. Trata-se de uma "resenha crítica" sobre o filme Danton, de Andrzej Wajda. O texto foi publicado, originalmente, no livro "O beijo de Lamourette"]

CINEMA: DANTON E O DUPLO SENTIDO, por Robert Darnton



No início do ano político, em setembro de 1983, quando os franceses voltaram de suas férias para encontrar o franco em baixa, uma escalada na corrida armamentista, uma crise no Oriente Médio e problemas em toda a frente do país, François Mitterrand convocou seus ministros no palácio Elysée e censurou-os pelo lamentável estado da história – não o rumo atual dos acontecimentos, mas a história que as crianças francesas estavam deixando de aprender na escola.

O presidente sem dúvida tinha outras preocupações. Mas a crise que ocupava o primeiro lugar em sua agenda era a incapacidade do eleitorado em discernir os temas de seu passado. O que seria de uma coletividade de cidadãos que já não soubesse distinguir entre Louis XIII e Louis XIV, entre a Segunda e a Terceira República ou (e este parecia ser o grande problema) entre Robespierre e Danton?
Mitterrand pode não ter mencionado a controvérsia suscitada pelo filme de Andrzej Wajda, mas provavelmente estava pensando em Danton.

Ao assistir ao filme numa sessão privada antes de sua liberação em janeiro de 1983, não o aprovara. Seus aliados da esquerda socialista-comunista tinham ficado chocados com o filme, quando ele foi exibido na Assembléia Nacional. E, no semestre que se seguiu, ele deu aos intelectuais de esquerda uma oportunidade de lavrar tentos na imprensa popular, ao mostrarem sua capacidade de corrigir os registros históricos e sua determinação de retificar o currículo das escolas secundárias.

Enquanto a oposição se regozijava – Obrigado, Monsieur Wajda, exultou Michel Poniatowski dos gaullistas –, a esquerda esbravejava de indignação. ―Que história que nada!, exclamou Pierre Joxe, líder dos deputados socialistas na Assembléia Nacional.

E o pior era que aquilo podia ser tomado como verdade pelos escolares franceses. Vítimas de reformas curriculares que haviam lhes amputado a história, os alunos não poderão saber quem era Danton depois de vê-lo retratado dessa maneira.

Louis Mermaz, o presidente socialista da assembléia, fez a mesma advertência: O ensino da história se tornou tão ruim [...] que os jovens de hoje não têm o conhecimento cronológico que os homens de minha geração tiveram a sorte de adquirir desde a escola primária. O filme é enganador. [...] Ele me faz querer lançar um apelo à retomada do ensino de história, coisa essencial para uma nação, para uma civilização.

Tal veemência pode parecer enigmática para os americanos que assistiram a Danton. Sabemos que os franceses levam sua história a sério e que não se pode mexer em sua Revolução. Mas por que os socialistas desmentem uma versão da rixa entre Danton e Robespierre que coloca o primeiro numa luz favorável? O empenho de Danton em deter o Terror não pode ser visto como um prenúncio heróico da resistência ao stalinismo? Wajda não é um herói do Solidariedade? E não seria de se esperar que Danton de Wajda interessasse à esquerda moderada na França, aos paladinos do socialismo com face humana, ao partido que cobriu os painéis, durante a campanha de Mitterrand, com a figura de um punho estendendo uma rosa?

Agora que Danton atravessou o oceano, parece oportuno abordar essas questões, pois elas nos introduzem no estranho mundo simbólico da esquerda européia, um mundo onde os intelectuais se enredaram nos mitos por eles criados e onde as linhas facilmente se cruzam, mesmo quando se estendem entre os bien pensants de Paris e Varsóvia na melhor das intenções possíveis. Danton surgiu das duas capitais, como uma história simultânea de duas cidades.

Sobrevivendo à repressão contra o Solidariedade, Wajda dedicou seu filme seguinte a um tema histórico, situado a salvo em Paris, dois séculos antes que os zomos estampassem os últimos remanescentes da livre expressão nas ruas de Varsóvia.

O filme começa com algumas cenas sinistras nas ruas de Paris, no final de 1793. Danton chega de sua propriedade rural para fazer recuar o Terror que ele próprio ajudara a instaurar, depois da derrubada da monarquia em agosto de 1792. Logo se envolve numa luta desesperada sobre o curso da Revolução, que lança os moderados ou Indulgentes contra a linha dura em torno de Robespierre, no Comitê de Salvação Pública.

O filme explora a impotência de Danton em suspender o recurso à guilhotina e termina com sua própria execução em 5 de abril de 1794.

Para que uma história tão complexa coubesse num filme, Wajda teve de cortar os fatos e reduzir seu texto. Ele trabalhou a partir de uma peça polonesa de Stanislawa Przybyszewska, que enaltecia Robespierre como paladino do povo e que servira como ponto de convergência para a esquerda polonesa nos anos 1930.

Para a adaptação da peça para o cinema, Wajda recorreu a um roteirista francês, Jean-Claude Carrière, e o Ministério da Cultura da França contribuiu com 3 milhões para o orçamento de 24 milhões do filme.

Os atores, eqüitativamente divididos entre poloneses e franceses, falavam suas línguas maternas, deixando aos dubladores a tarefa de criar a ilusão de um diálogo inteligível entre as duas partes. (Na versão exibida nos Estados Unidos, o filme é falado em francês e traz legendas em inglês, enquanto os lábios dos atores poloneses seguem o ritmo de seu próprio idioma.)

Em virtude disso, Danton ficou intensamente polonês e intensamente francês. Também apareceu como uma produção de ar oficial do governo Mitterrand, como se os socialistas quisessem vincular a tradição revolucionária francesa ao movimento como que revolucionário do Solidariedade.

A composição de ingredientes era perfeitamente talhada para misturar os significados e confundir os críticos. Wajda descarta rapidamente a versão mais simples do que poderia significar o filme para os poloneses. ―Não é uma alegoria, foi o que ele repetiu incessantemente nas entrevistas para a imprensa francesa. ―Que uma coisa fique bem clara, disse ele ao Le Monde, ―Danton não é Lech Walesa e Robespierre não é Jaruzelski! ―Se você quer encontrar analogias históricas, terá de procurá-las num período totalmente diverso, disse ao Le Matin.

Aqueles dois anos do Solidariedade não foram uma revolução, ou, em todo caso, não da mesma natureza da Revolução Francesa. É verdade que é possível imaginar paralelos entre os dois pares de rivais políticos.

A meticulosidade pessoal e o inflexível dogmatismo de Robespierre fazem lembrar a rigidez empertigada do general polonês, e a sociabilidade mundana de Danton sugere a conduta popular do herói dos estaleiros de Gdansk. Mas Wajda não permite que sua história se reduza a uma fórmula simples – o apparatchik versus o homem do povo – e apresenta inúmeros indícios incriminadores contra Danton.

Se Gérard Depardieu estivesse encenando uma defesa de Walesa, seria tolo insistir sobre a corrupção de Danton no exato momento em que o governo polonês estava tentando denegrir a reputação de Walesa, acusando-o de embolsar fundos do Solidariedade. Mas permanece o fato de que Danton e Robespierre encarnam dois tipos de revolução e que o filme inclina a balança para o lado de Danton.

―Robespierre é o mundo do Leste, Danton é o mundo ocidental, declarou Wajda ao Le Matin. ―A atitude e os argumentos [de Danton] estão muito próximos de nós. O choque entre esses dois homens é exatamente o momento pelo qual estamos passando hoje. O vigoroso desempenho de Depardieu faz de Danton a figura mais simpática e dominante, mas sua insistência sobre o gosto de Danton pelos prazeres pode ser vista como uma decadência burguesa.

Quando vai jantar com Robespierre para discutir suas diferenças, ele se embebeda de uma maneira piegas. Sua incapacidade de empreender uma ação decisiva contra o Reinado do Terror, na crise de março e abril de 1794, pode inclusive insinuar o malogro do Ocidente em salvar o Solidariedade em 1981.

Contudo, o filme é ambíguo demais para oferecer uma moral definida para o presente. Nem dá para avaliar o quanto Wajda se pôs ao lado do dantonismo, porque não se têm à disposição os textos do roteiro e da peça polonesa original para compará-los. Mesmo assim, é possível indicar os pontos em que o filme se afastou dos registros históricos.

Três deles provavelmente se destacariam com clareza para um público polonês. Logo depois do início do filme, um garoto, o próprio retrato da inocência, fica de pé numa tina, nu, tentando recitar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, enquanto sua irmã mais velha lhe dá banho. Sempre que lhe faltam as palavras, ele estende a mão e ela lhe bate nos nós dos dedos. Mais do que lavar o menino, ela está lavando o seu cérebro para cair nas graças do distinto hóspede de seu pai, o Cidadão Robespierre.

Logo a seguir, Robespierre dá ordens a alguns rufiões da polícia secreta, para que destruam a loja onde Camille Desmoulins estava imprimindo Le Vieux Cordelier, o jornal que popularizou as tentativas dos dantonistas em deter o Terror. Tendo se demorado sobre a dor estampada no rosto do menino, a câmera toma todos os detalhes da destruição dos prelos.

Nenhum dos dois episódios ocorreu de fato – e, até onde se pode dizer, não ocorriam na peça de Przybyszewska. Mas o espectador polonês não precisa saber que são inventados por Wajda para vê-los como uma crítica ao controle sobre a liberdade de pensamento dentro do país.

O terceiro episódio faz uma denúncia ainda mais clara do doutrinamento stalinista. Robespierre, envolto nos mantos de um César, está posando para seu retrato no estúdio de David. Ele se interrompe para repreender o promotor do Tribunal Revolucionário, que está tendo dificuldades para manipular o julgamento de Danton. Então ele nota uma tela gigantesca, onde David começou a pintar sua famosa versão do Juramento do Jeu de Paume, de 20 de junho de 1789. Entre o grupo de patriotas, Robespierre vê a cabeça recém-pintada de Fabre d‘Eglantine, que no momento está sendo julgado junto com Danton. ―Apague-a, ordena ele. ―Mas ele estava lá, objeta David. No entanto, Robespierre insiste, e assim Fabre desaparece como todas as vítimas da historiografia stalinista.

Essa cena, porém, nunca aconteceu. Fabre não participou do Juramento do Jeu de Paume, pois não era deputado para os Estados-Gerais em 1789. Pelo visto, Wajda estava tão decidido a desmascarar a falsificação histórica dos stalinistas que se dispunha a falsificar pessoalmente. Não se poderia esperar que os espectadores poloneses de Wajda conhecessem muito bem a biografia de um personagem obscuro como Fabre d‘Eglantine, mas na certa podia-se contar que tivessem concepções sólidas sobre a história, pois a consciência nacional na Polônia é apaixonadamente histórica.

Desde os primeiros momentos de sua existência, o Solidariedade tentou libertar tanto o passado quanto o presente. Tendo sido criados na ideologia histórica utilizada pelo regime para sua autolegitimação – principalmente a linha que liga o robespierrismo ao bolchevismo –, os operários dos estaleiros de Gdansk reivindicavam o direito de despir os dogmas de sua história e de confrontar os fatos, em especial os incômodos fatos que se estendem do massacre soviético dos oficiais poloneses em Katyn, em 1940, às partilhas da Polônia no século XVIII.

Wajda montou uma produção de Danton nos estaleiros em 1981. Seus filmes anteriores mostravam que ele compartilhava a paixão de seus conterrâneos pelo passado. Cenário após a batalha (1970) ligava um levante popular a uma peça-dentro-de-uma peça, comemorando a vitória polonesa sobre os cavaleiros teutônicos na Batalha de Tannenberg, em 1410, e O homem de mármore (1977) relatava a tentativa de um cineasta em recuperar a verdadeira história de um herói proletário entre o lixo da propaganda stalinista.

Um público familiarizado com esse tema poderia ver uma mensagem semelhante na dissecação de Wajda da mitologia robespierrista. É claro que ninguém tem como saber o que vêem os poloneses em Danton, a não ser que se entrevistasse um grande número deles a uma distância segura da polícia. Mas parece provável que muitos episódios do filme assumem um significado especial nas condições que se seguiram à proscrição do Solidariedade. Os parisienses nas filas de pão resmungando contra o Comitê de Salvação Pública podiam estar maldizendo a ditadura militar em Varsóvia, Danton lançando desafios no Tribunal Revolucionário podia ser Walesa nos estaleiros de Gdansk: ―O povo tem apenas um inimigo: o governo.

A justificativa de Robespierre para o Terror – a necessidade da tirania a serviço da democracia – podia ser a de Jaruzelski. Como informou Bernard Guetta, o ex-correspondente do Le Monde em Varsóvia, depois de ter visto o filme: Uma centena de coisas nele têm uma ressonância que os poloneses, ou quem quer que tenha vivido entre eles nos últimos anos, não deixariam de captar. Captar essa ressonância não é uma questão de apontar alegorias ou descobrir um código secreto. Os poloneses aprenderam a conviver com significados ocultos e protestos ambíguos.

O detestadíssimo noticiário polonês das seis horas ensinou-os a reagir de maneira experiente às imagens nas telas, e pode-se confiar que eles notam os pesos dados às imagens em Danton. Elas constituem uma denúncia arrasadora da opressão do governo. Embora o filme conceda alguns momentos de triunfo a Robespierre na tribuna, o trabalho de câmera desfaz o efeito de suas palavras. Enquanto ele intimida os deputados da Convenção com a linha oficial do Terror e da Virtude, a tela é ocupada por um close-up de seus requintados sapatos. Ele chega aos momentos de clímax no discurso erguendo-se na ponta dos pés, mais parecendo um mestre de danças do que um protetor do povo, em contraste com Danton, que ruge para a multidão na sala do tribunal como um leão enjaulado.

Se Robespierre chega a marcar alguns pontos nos debates, eles são anulados no final pela guilhotina. A lâmina desce sobre a garganta de Danton com uma inexorabilidade revoltante. O sangue jorra na palha sob o cadafalso. O carrasco segura a cabeça cortada diante da multidão, e a câmera se detém nela numa seqüência de tomadas excessivamente expostas, tiradas de baixo e voltadas para o sol, que dão ao espectador uma sensação de vertigem e náusea.

Então a cena passa para Robespierre, suando como um louco na cama, enquanto o menino, que finalmente aprendeu seu catecismo, recita a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. À medida que ele vai papagueando as palavras, sua voz é afogada pela música dissonante de fundo, e com essa nota estridente termina o filme.

Apesar da pequena publicidade e poucas críticas, Danton tem sido exibido para salas lotadas em toda a Polônia. Só se pode arriscar palpites quanto à sua acolhida, mas é difícil imaginar que a platéia deixe a sala sem um sentimento de ódio renovado contra o governo polonês.

Na França, tudo parecia preparado para fazer de Danton um grande sucesso. Wajda era uma celebridade, o Solidariedade tinha conquistado o coração do público, e o governo socialista recém-eleito estava ansioso em apresentar o filme como sua abertura para o bicentenário da Revolução Francesa em 1989.

Mas Danton gerou um escândalo, principalmente na esquerda, onde a difícil aliança entre socialistas e comunistas deixa algumas incertezas sobre quem há de representar a tradição revolucionária. Os comunistas tentaram assestar a maior denúncia contra o filme: ―É contra-revolucionário, escreveu um crítico no L‟Humanité. Para não ficarem para trás, os socialistas responderam na mesma moeda. ―Desfigura tudo o que há de mais belo [na Revolução], declarou Philippe Boucher ao Le Monde. E Pierre Joxe acrescentou: ―A história [de Wajda] não é a nossa. A ―nossa história era a da esquerda, uma grande tradição desenvolvida por uma sucessão de grandes historiadores – Michelet, Jaurès, Mathiez, Lefebvre – e ensinada a muitas gerações de escolares, desde a Vitória da école laïque no século XIX.

Para fazer de seus alunos cidadãos, os professores da velha escola inculcavam em seus cérebros uma quantidade enorme de fatos. As crianças recebiam uma primeira apresentação da cronologia na escola primária, freqüentemente utilizando os pequenos manuais da coleção ―Petit Lavisse, que fornecia as obras dos grandes historiadores em porções facilmente digeríveis. Depois, no lycée, dedicavam-se a estudos sistemáticos. No final da cinquième, uma turma composta basicamente de alunos na faixa dos treze anos, eles tinham passado pelas invasões bárbaras. Entravam na Idade ―Moderna, do século XVI ao século XVIII, na troisième. Então, na seconde, aos dezesseis anos, passavam um ano inteiro estudando a Revolução e o império – e muitas vezes voltavam a eles na terminale (aos dezoito anos).

A Revolução servia como ponto central de toda a seqüência. Quando os estudantes saíam para enfrentar o baccalauréat ou os boches, sabiam o que tinha ocorrido entre 1789 e 1799, e principalmente na crise máxima de 1793-94.

Embora os manuais variassem, a mensagem permanecia a mesma: no ano do Terror, uma França republicana tinha se erguido contra as forças conjugadas de uma Europa feudal e as derrotara. Danton ocupava um lugar importante nessa visão – não o Danton dos Massacres de Setembro, mas o Danton de ―Il nous faut de l'audace (―Precisamos de ousadia) que ainda desafia as forças estrangeiras a invadirem a França do alto de um pedestal no Boulevard Saint-Germain.

Ele foi posto no pedestal por Alphonse Aulard, o primeiro historiador a ocupar a cátedra da Revolução Francesa, criada em 1891 na Universidade de Paris. O aluno e sucessor de Aulard, Albert Mathiez, voltou-se contra o mestre e tentou tirar Danton de suas alturas provando que ele tinha se vendido à contra-revolução. Em lugar dele, Mathiez alçou Robespierre, o estrategista ideológico que formou uma aliança com o populacho para, segundo Mathiez, obrigar a França a seguir o caminho da revolução social.

O Robespierre de Mathiez cabia perfeitamente no leninismo e na idéia de uma ditadura do proletariado, e os sucessores de Mathiez, George Lefebvre e Albert Soboul, um marxista e o outro marxista-comunista, garantiram que Robespierre mantivesse sua posição naquilo que logo se cristalizou numa versão ortodoxa da Revolução Francesa e das revoluções em geral, as quais a partir daí supostamente teriam de seguir um curso que levava da guerra de classes ao Terror e ao socialismo, a menos que fossem desviadas por uma reação termidoriana como a que se seguiu à derrubada de Robespierre em julho de 1794.

Essa ortodoxia ainda dá os moldes para a história ensinada na Europa oriental: daí a ousadia da reabilitação de Danton a que procedeu Wajda. Mas ela nunca eliminou outras interpretações concorrentes na França. Hoje em dia, a maioria dos historiadores franceses provavelmente admitiria que as finanças de Danton não resistem a um exame detalhado.

Em 1789, como advogado, ele não estava propriamente numa situação próspera, atolado em dívidas de pelo menos 43 mil libras francesas. Em 1791, ele pagou seus credores e comprou uma herdade no valor de 80 mil libras francesas, sem nenhuma melhora sensível na prática de sua profissão nem a aquisição de qualquer outra fonte legítima de rendimentos. Provavelmente tirou dinheiro da corte.

Mas um político pode rechear sua bolsa sem trair seu país, e Danton certamente liderou a resistência aos exércitos invasores, após a derrubada da monarquia em 10 de agosto de 1792. Sua estátua ainda continua na Place Danton como a encarnação do patriotismo. Podia ser o Homem de Ferro de Wajda. Robespierre não ocupa um lugar comparável na imaginação de seus conterrâneos, embora ainda domine a historiografia francesa.

Apesar do considerável papel histórico desempenhado por Robespierre, ele não conquistou grande aceitação como personalidade na França, explicou Louis Mermaz ao Le Monde. ―E de se notar que não existe nenhuma Rue Robespierre em Paris. Como que em resposta, Jean Marcenac apresentou a posição comunista aos leitores do L' Humanité: Eu moro em Saint-Denis, a única cidade na França onde há uma estátua de Robespierre. [...] Vou comprar três rosas vermelhas e depô-las na base de seu busto na praça Robespierre. Faz parte de minha conduta. Esta sempre foi minha conduta. Wajda perdeu o rumo.

O intenso simbolismo dessas declarações mostra até que ponto a Revolução guarda sua força mítica na França. Controlar o mito é exercer poder político, é marcar posição como o autêntico representante da esquerda. A Revolução assentou as categorias básicas da política francesa, começando pela distinção entre esquerda e direita, que deriva da distribuição dos lugares na Assembléia Constituinte.

Os políticos que hoje sentam na Assembléia Nacional sabem que podem aparar as objeções manipulando as categorias. Como Robespierre, eles tentam falar em nome do povo soberano e contornar seus inimigos à esquerda.

A ala esquerda dos socialistas parecia vulnerável quando Danton estreou em janeiro de 1983. O governo tinha mudado de rumo e adotara políticas econômicas mais próximas às de Raymond Barre ou Margaret Thatcher do que do programa radical com que Mitterrand se elegera. Sua contemporização cheirava a dantonismo, e os comunistas começaram a criticá-la da esquerda, tal como fizera Robespierre ao atacar os moderados na Convenção, alinhando-se com as reivindicações populares dos sans-culottes.

Os socialistas precisavam provar sua pureza ideológica. Assim, correram em defesa da visão ortodoxa da Revolução Francesa. Concorriam entre si na disputa para denunciar as heresias em Danton. Foi um espetáculo extraordinário, os partidários convictos dissertando sobre história uns para os outros como se fossem professores dando aula. Cada ponto lavrado contra Wajda podia ser contabilizado como um avanço rumo à vitória contra a oposição e como uma demonstração da maior fidelidade pessoal à verdadeira tradição revolucionária. Todos podiam participar desse jogo – isto é, todos que tivessem uma boa educação ao velho estilo.

Wajda foi acusado de ter dado ao Terror uma aparência de gratuidade ao eliminar todas as referências ao seu contexto: a guerra civil na Vendéia, as revoltas federalistas nas províncias, as intrigas contra-revolucionárias em Paris e a invasão prestes a transpor as fronteiras.

Wajda tinha ignorado a campanha de Robespierre contra a extrema-esquerda liderada por Jacques Renée Hébert, assim transformando em tolice a oposição de esquerda a Robespierre no Comitê de Salvação Pública e obscurecendo as razões políticas do golpe de Robespierre contra os dantonistas: a necessidade de conservar o apoio dos sans-culottes e impedir que a Revolução desse uma guinada para a direita, após o expurgo da esquerda hebertista. Wajda tinha chegado a cortar os próprios sans-culottes.

O populacho mal aparece no filme, embora a Revolução Francesa tivesse sido um levante das massas, e não um duelo parlamentar entre alguns oradores burgueses. (Na verdade, Wajda tinha planejado filmar algumas cenas de multidões em Cracóvia, mas o governo polonês, que tinha suas próprias multidões para apoquentá-lo, não o autorizou.)

Finalmente, os críticos esquadrinharam o filme atrás de anacronismos.

Saint-Just usava um brinco e ficava cabriolando para cima e para baixo como um hippie moderno, ao invés do sinistro ―Anjo da Morte da história ortodoxa. Ele atirou o chapéu no fogo no quarto de Robespierre, ao passo que esse acesso de raiva tinha acontecido de fato durante um debate dramático no Comitê de Salvação Pública.

Robespierre e Danton eram chamados de Maxime e Georges pelos seus adeptos, enquanto na verdade os revolucionários raramente usavam os primeiros nomes, mesmo depois de terem adotado o tu democrático.

Esses detalhes chocaram os críticos não por causa de sua imprecisão, mas por darem aos líderes da Revolução um ar mais familiar e menos heróico do que as figuras dos livros de história. Billaud-Varenne estava barbudo demais, Desmoulins fraco demais, Danton bêbado demais.

O retrato de um Robespierre gélido, neurótico, desumano, de Wojciech Pszoniak, era particularmente ofensivo, pois Robespierre era a pedra de toque da ortodoxia nas interpretações da Revolução. Igualmente importante, ele era o modelo do intelectual moderno. Personificava o engagement. Teórico que virou homem de ação, ele estabeleceu as linhas do partido e elaborou uma estratégia no interesse das massas. Os líderes socialistas se consideram intelectuais desse feitio. Mitterrand gosta de ser visto como um homem de letras e torna público que tem à cabeceira um exemplar da história da Revolução de Michelet. Numa de suas primeiras nomeações importantes, ele indicou Claude Manceron, o historiador da Revolução, como seu attachê culturel encarregado da missão especial de preparar uma comemoração espetacular do bicentenário, que também pudesse celebrar a vitória dos socialistas na eleição presidencial de 1988. Max Gallo, o porta-voz do governo, é um ex-professor de história que escreveu uma biografia de Robespierre na linha de um Mathiez com pitadas de Freud. Estes e muitos outros da cúpula do Partido Socialista acham natural que os intelectuais exerçam o poder.

Na verdade, eles crêem que o poder é intelectual, pelo menos em parte, como argumentou Michel Foucault em vários livros de influência. Assim, Jack Lang, ex-diretor teatral, agora ministro da Cultura, que esteve por trás do patrocínio francês de Danton, decidiu que uma maneira de enfrentar a recessão seria convocar uma reunião gigantesca de intelectuais em Paris. Eles discursaram uns para os outros durante dois dias, neste último inverno, e se dissolveram na esperança de terem erguido o moral do país, senão mesmo seu PNB.

Mas os ânimos esmoreceram, e no verão o governo lançou um outro apelo geral pelo apoio da esquerda intelectual. Mesmo assim, as coisas não melhoraram, e no último congresso do Partido um delegado se pôs de pé, apontou com o dedo para os líderes e citou Robespierre quanto às cabeças que precisavam rolar. Esse tipo de comentário faz sentido numa cultura política que ainda traz a marca de 1794.

Assim, o debate sobre Danton, embora parecesse girar sobre questões fatuais que podiam ser decididas desde as cartilhas da Terceira República, na verdade dizia respeito ao poder simbólico. Ao apelarem aos fatos, porém, os políticos se expuseram a algumas dificuldades levantadas por seus companheiros de percurso da intelectualidade. As cartilhas estavam ultrapassadas. Pior, a própria fatualidade fora relegada pela vanguarda à sucata das idéias antiquadas, como o liberalismo e o positivismo.


Foucault e uma legião de críticos literários tinham dissolvido os fatos em ―discurso, e os historiadores mais na moda, isto é, os identificados com a escola dos Annales e sediados na École des Hautes Études en Sciences Sociales, tinham dado as costas para a política e os acontecimentos, indo estudar as estruturas e mentalités.

Muito antes da estréia de Danton, a cisão entre a velha e a nova história fora agudizada por uma briga entre dois dos principais historiadores da Revolução, Albert Soboul e François Furet. Soboul, comunista e professor na Sorbonne, pertencia à linha direta de descendência de Mathiez. Furet, ex-comunista e importante membro dos Annales na École des Hautes Études, atacou toda a tradição de Mathiez a Lefebvre como um mito perpetrado em favor do stalinismo.

A polêmica abalou a Rive Gauche durante vários anos da década de 1970. Mas ela se acalmara na época em que os socialistas e comunistas se puseram em cooperação para eleger Mitterrand. No outono de 1982, Soboul morreu. Seu funeral foi uma coisa triste, uma grave massa comunista com rosas vermelhas e trajes negros no Mur des Fédérés, o território mais sagrado da esquerda no Cimetière du Père-Lachaise. Parecia marcar o fim de uma visão da Revolução que inspirara os franceses por mais de cem anos.

Se há agora alguma outra visão predominante, é a que deriva da École des Hautes Études. Furet, atual presidente da École, tem se dedicado a repensar a Revolução como uma luta pelo controle do discurso político.

Num dos poucos artigos favoráveis sobre Danton, ele elogiou Wajda por fazer uma punção do mito do robespierrismo e expor seus vínculos com o stalinismo. Ao mesmo tempo, enquanto os profissionais faziam suas contagens de pontos, os alunos tinham de fazer seus trabalhos de casa e enfrentar os exames do baccalauréat. E isso sem suarem sobre os textos que haviam deturpado as lembranças de seus pais, porque a história tinha sumido do currículo.

Depois de uma série arrasadora de reformas, ela fora engolida pelas sciences humaines, modernizadas pela existência. As crianças francesas já não atravessam cronologicamente o passado completo do país. Elas estudam temas como a sociedade urbana, campesinatos comparados e sistemas ecológicos.

Boas no discurso e fraquinhas nos fatos, não sabem dizer a diferença entre Robespierre e Danton. Assim, ao discutirem Danton, os políticos ficaram presos num duplo nó. Apelaram para um tipo de história antiquada que já não parecia sustentável para a sua vanguarda intelectual e não mais existia para seus filhos ou netos. Eles próprios tinham criado o problema, pois haviam encarregado um herói da esquerda, um intelectual do mais puro anti-stalinismo, para celebrar a sua Revolução, e ele a denegrira.

Aonde o mundo iria parar? Os socialistas só podiam abanar a cabeça e discorrer entre si sobre as heresias de Wajda, sem se darem conta de que sua indignação mostrava o quanto se mantinham prisioneiros de sua própria mitologia. Em busca de uma saída para o dilema, eles tomaram o rumo previsível: uma outra reforma do ensino. Um ―Estado-Geral de historiadores já se reuniu e propôs novas mudanças curriculares.

Revigorado por suas leituras de Michelet, o presidente da República quer que a história ocupe o centro do novo sistema – uma história com os fatos bem direitinhos e os heróis encaixados nas categorias certas. No entanto, resta um problema: como endireitar os fatos. Tendo se apegado de maneira tão convincente à velha ortodoxia e sofrido tanto com as últimas séries de revisionismo, eles podem resistir a uma nova modernização.

Mas uma coisa parece clara no debate sobre Danton: os fatos não falam por si sós. O filme poderia ser visto de maneiras completamente diferentes. Não foi o mesmo em Varsóvia e Paris. Sua capacidade de gerar um duplo sentido sugere que o próprio significado é modelado pelo contexto e que a significação da Revolução Francesa nunca se esgotará.

O debate pode parecer uma inofensiva luta de sombras, mas ainda assim há vida nas sombras. Os fantasmas de Robespierre e Danton continuam a assombrar a esquerda européia, e talvez todos nós tenhamos de nos entender com o terror entre essas datas simbólicas, 1984 e 1989.

O autor do texto, o historiador estadunidense Robert Darnton (1939-)

[abaixo segue o texto publicado no jornal El País em 09 de janeiro de 1983. confira o hospedeiro original em http://elpais.com/diario/1983/01/09/cultura/410914807_850215.html ]

La izquierda francesa considera 'deplorable' el filme 'Danton' de Wajda

La película Danton, de Andrezj Wajda, centrada en el tema de la Revolución Francesa, ha desencadenado en Francia, donde acaba de ser presentada, críticas de distinto signo. Según la agencia France Presse, la derecha la ha acogido con aplausos y la izquierda en el poder la ha considerado deplorable. Los críticos de esta tendencia política la consideran "un panfleto antisocialista", particularmente inoportuno a dos meses de las eleccioneas municipales francesas.Los diputados de la oposición al Gobierno de François Mitterrand no han ocultado su satisfacción por lo que consideran que es un regalo involuntario financiado en parte por sus adversarios políticos. Danton es una coproducción franco-polaco, con capital mayoritariamente francés. El Ministerio francés de Cultura desembolsó para esta producción unos cincuenta millones de pesetas.
En su obra, Wajda otorga la parte de bueno de la película a Danton, partidario del justo medio opuesto al terror revolucionario posterior a 1793, en detrimento de Robespierre, presentado como un sanguinario dogmático.
El estreno de Danton en Polonia, patria de Wajda, previsto para el 12 defebrero, ha sido retrasado hasta el 25 de marzo próximo, "debido a que el filme, con diálogos en francés, no tiene todavía preparados los subtítulos en polaco", según explicaron fuentes del taller de producción de la película.
La obra de Wajda ha recibido, según las mismas fuentes, el permiso de la censura, organismo que está dentro del Ministerio de Cultura de este país. El ministerio Polaco ha otorgado, además, al filme la más alta calificación artística.
La proyección de esta película también ha sido retrasada hasta la primavera en el Instituto Francés de Varsovia.
Las autoridades polacas han recriminado a Wajda "que haya abandonado sus funciones", al final de diciembre pasado, como presidente de la Asociación de Cineastas Polacos, cuyas actividades fueron suspendidas el 13 de diciembre de 1981 con motivo de la proclamación del estado de guerra. El director había renunciado a seguir al frente de esta asociación, alegando que él fue elegido por un año y que su mandato expira el próximo mes de febrero, y que no se ha comprometido a presentar su candidatura para un segúndo mandato.
Las autoridades polacas reprochan al director de cine el haber colaborado en el boicoteo que hicíeron los artistas de teatro y de cine a la radio y a la televisión nacionales polacas durante el estado de guerra. Las autoridades disolvieron por éste motivo la asociación de actores.
En todas su películas, Wajda ha mantenido siempre una posición, abierta o latente, de crítica al sistema defendido e impuesto por las áutoridades polacas.

[publico abaixo o texto de Isadora Remundini, cuja hospedagem orginial encontra-se em http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=405#_ftn1 ]

A REVOLUÇÃO NO ÉCRAN: CONSIDERAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS SOBRE A RESSIGNIFICAÇÃO AUDIOVISUAL DA FRANÇA REVOLUCIONÁRIA NO PERÍODO DE 1789 A 1794, por Isadora Remundini [1]

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos do século XVIII ocorreu na França o movimento revolucionário que derrubou o poder monárquico e espraiou-se pelo ocidente sob as formas de influência da democracia liberal, dos ideais burgueses e de diversos fatores culturais. Os distintos e numerosos registros realizados durante este período demonstram uma noção, por parte de seus contemporâneos, de que se estava a viver um momento memorável.

Conforme ratifica Michel Vovelle, não apenas cronistas, literatos, filósofos e periodistas preocupavam-se em registrar, mas também, “conscientes de viver um período excepcional, desenhistas, aquarelistas e gravadores começaram então a propor uma crônica precisa dos acontecimentos.” [2]

A Revolução Francesa, assim, aparece na historiografia cingida por este caráter de tipo ideal, vista como um acontecimento extraordinário que serviu de inspiração para os movimentos revolucionários posteriores e, em última análise, delineou o mundo contemporâneo, especialmente, no que se refere à configuração política democrática iluminada pelo ideário de Montesquieu e Rousseau.

Deste modo, tornam-se frequentes as acepções de que “a burguesia de 1789 garantiu ao sábio a liberdade da pesquisa, ao produtor a da iniciativa; ao mesmo tempo, tentou racionalizar a organização política e social. Assim, a Revolução marca uma etapa no destino do mundo ocidental” [3]

Frequentemente vinculada a este potencial de reflexão político-ideológica, a temática da Revolução fatalmente seria registrada pelo novo difusor de idéias surgido no final do século XIX: o cinema. Ao longo de todo o século XX, e já adentrando o século posterior, este acontecimento histórico foi retratado, compondo uma vultosa filmografia, na qual destacam-se:

Napoleão” de Abel Gance já em 1927,

“A Queda da Bastilha” de Jack Conway em 1935, “
A Marselhesa” de Jean Renoir em 1938,
Marat/Sade” de Peter Brook em 1965,
“1789” de Ariane Mnouchkine em 1974,
Casanova e a Revolução” de Ettore Scola em 1982,
“Danton” de Andrzej Wajda em 1983 e os recentes,
“A Inglesa e o Duque” de Eric Rohmer em 2001, “
Morte ao Rei” de Mike Barker em 2003 e “
Maria Antonieta” de Sofia Coppola em 2006.

Se num primeiro momento, a preocupação do historiador para com o filme era observar os anacronismos e ater-se à diferenciação entre o ficcional e o real, de forma mais aprofundada, na historiografia recente, novas questões foram colocadas para este tipo de documento.

Os historiadores demonstram uma melhor compreensão das especificidades da linguagem cinematográfica, preocupando-se com as construções da memória histórica e as formas de uso do passado expressas no cinema.

Portanto, no presente artigo, o posicionamento historiográfico adotado condiz com o proposto por Marcos Napolitano: “Independentemente do grau de fidelidade aos eventos do passado, o filme histórico é sempre representação, carregada não apenas das motivações ideológicas de seus realizadores, mas também de outras representações e imaginários que vão além das intenções de autoria, traduzindo valores e problemas coetâneos à sua produção” [4].

Entre os exemplares audiovisuais que pretendem reconstruir momentos da Revolução, foram selecionados quatro filmes para um exame mais apurado.

A Marselhesa” (Jean Renoir, 1938), produzido na França, inicia-se em 14 de Julho de 1789, com o evento simbólico da queda da Bastilha, segue-se então, a trajetória de dois cidadãos comuns pelos acontecimentos da França revolucionária, passando pela história da composição do hino francês, e culminando no ataque ao palácio das Tulherias em 1792.

Casanova e a Revolução” (Ettore Scola,1982), cujo título original (“La Nuit de Varennes”) explicita seu recorte cronológico, retrata a viagem de uma diligência que segue a carruagem real quando da tentativa de fuga empreendida pela realeza em 1791, entre os componentes da diligência estão, além da dama de companhia da rainha, uma viúva proprietária de terras, um industrial da Alsácia e figuras ilustres como o escritor boêmio Restif de La Bretonne, o italiano Giacomo Casanova e o intelectual britânico Thomas Paine. O enredo do filme se constrói com base nos diálogos sobre a vida social e política destas pessoas e termina com a chegada da diligência em Varennes e a conseqüente prisão de Luis XVI e sua esposa Maria Antonieta.

Danton” (Andrej Wajda, 1982), encomendado pelo Ministério da Cultura de François Mitterrand, que recebeu no lançamento brasileiro o subtítulo de “O Processo da Revolução”, inicia-se no final de 1793, com o retorno do personagem título, e aborda o período do Terror Jacobino, orbitando em torno das figuras de Georges Jacques Danton e Maxime Robespierre.

O último filme selecionado, “Marat/Sade” (Peter Brook,1966), apesar de cronologicamente anterior será abordado por último, uma vez que estabelece diálogo com os demais filmes e tem por objetivo direto discutir o sentido da Revolução e seus reflexos na modernidade. Com formato peculiar, este filme trata-se da adaptação da peça de Peter Weiss, “Persecution and Assassination of Jean-Paul Marat as Performed by the Inmates of the Asylum of Charenton under the Direction of the Marquis de Sade” [5], cujo título esclarece bastante de seu conteúdo. Trata-se da interpretação do assassinato do líder revolucionário Marat por Charlotte Corday, cena que se tornou bastante conhecida pela pintura de Jacques-Louis David.

A REVOLUÇÃO COMO MONUMENTO

Com base nas noções expostas por Jacques Le Goff, segundo o qual o monumento é um legado à memória coletiva e “tem como características o ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas”[6], Marco Napolitano propõe duas vertentes de interpretação do cinema histórico: a monumentalização, isto é, o cinema que confere status de monumentos históricos a eventos não acentuados na memória coletiva, e o cinema que desconstrói os monumentos (desmonumentaliza). Nas palavras do autor: “Se todo documento pode ser munumentalizado pela história a serviço de um determinado poder, o monumento pode sofrer o processo inverso, pois, ao ser desconstruído, revela as várias camadas documentais e as várias historicidades que o constituíram, desmascarando seu discurso monolítico sobre o passado nele representado””[7] A Marselhesa” é, entre os filmes apontados, o único em que encontramos a elevação de um elemento histórico à condição de monumento. O “citoyen” é o sujeito histórico de Jean Renoir que, em seu filme, produzido pela cooperativa de cinema “Ciné-Liberté”, buscava imprimir no cinema uma identificação com seu próprio período, seja com o proletariado, afirmando que “Esse filme não deve ser o filme de um homem ou de uma sociedade financeira ele tem que ser o filme da classe operária”[8], ou com os franceses que haviam lutado em Verdun. Renoir intencionalmente omite a presença das ‘figuras ilustres’ da Revolução em favor das pessoas comuns; personagens como Marat e Danton são apenas citados pelos soldados do batalhão marselhês e, aquelas figuras que de fato são interpretados por atores, como Luis XVI e Maria Antonieta, em momento algum são referidos pelo nome, apenas pelo título de Rei e Rainha, ou mesmo, pela alcunha satírica de “Rei Veto”, em alusão à possibilidade do veto régio na constituição de 1791. A versão sobre o surgimento do Hino francês, que intitula o filme, é também apresentada pela ótica do cidadão comum, uma vez que a composição e execução do hino são colocadas como fatos de menor expressão frente à difusão da canção entre os populares, os marselheses é que, dando a esse hino revolucionário seu verdadeiro sentido, são os verdadeiros pais dele.”[9] O diretor concebe “A Marselhesa” com a pretensão de compor um retrato fiel da Revolução, conforme nota-se pela asserção “Não escrevemos uma linha sequer do roteiro sem nos basearmos em documentos extremamente sérios e verificados. Tivemos a preocupação em respeitar a história. [10] Entretanto, este respeito pela história implicou no filme de Renoir a persistência de uma leitura tradicionalista e pouco crítica da Revolução que, em detrimento de observar o período sob a ótica inovadora do cidadão comum, não observa a história de baixo para cima, antes eleva o popular, igualando-o aos heróis revolucionários, transformando-o em monumento histórico. As leituras da França revolucionária feitas por Wajda e Scola estão mais próximas à desconstrução dos monumentos erigidos pela historiografia tradicional e, têm por escopo a decomposição das idéias acentuadas de que a Revolução Francesa teria sido a disputa maniqueísta que situava o povo e os arautos da burguesia no pólo positivo e o rei e a nobreza no pólo negativo. Casanova e a Revolução” não é apresentado sob o ponto de vista privilegiado de uma ordem; na diligência encontram-se nobres e burgueses, e suas idéias sobre o processo revolucionário se opõem. Georges Lefebvre sintetiza a fuga da realeza empreendida na noite de 20 de junho de 1791: Uma pesada e suntuosa belinda levou Luis XVI e os seus para Châlons, de onde eles deveriam atingir Montmédy. Quando o rei chegou, em plena noite, no alto da costa de Varennes, não encontrou os cavalos de muda, sobre os quais se tinha combinado, e parou: foi a sua perda.”[11] O episódio que acirrou o conflito político e acabou por levar à execução do Rei é observado pelo diretor não através da própria realeza, mas através das opiniões e impressões destas figuras na segunda diligência. No filme, a vida pessoal dos viajantes é, com freqüência, colocada à frente das discussões e acontecimentos políticos, todavia, trata-se exatamente do método empreendido pelo diretor para por em questão as impressões sobre a revolução. As personagens de La Bretonne e Casanova que são notoriamente lembradas por sua vida boêmia, e apresentados de maneira geral como figuras erotizadas[12], aparecem no filme envelhecidos, como um esboço daquilo que foram um dia. Casanova, em especial, interpretado por Marcelo Mastroianni, alegoriza a figura do rei, uma vez que também viaja incógnito, e representa assim a decadência da realeza, remarcada na cena em que filmado em plano picado[13] o personagem retira a peruca deixando à mostra a calvície do ator que, em consonância com o personagem, fora galã do cinema italiano nas décadas de 50 e 60. A burguesia revolucionária, por sua vez, é representada por personagens juvenis como o estudante que flerta com a empregada negra da condessa ou Thomas Paine, interpretado pelo ator americano Harvey Keitel, ainda jovem. Contudo, a mocidade revolucionária de Scola também não é vista de modo positivo, é colocada como intransigente, rude e dogmática. [14] Danton” foi encomendado com a esperança de constituir-se, na ocasião do bicentenário da Revolução, uma reafirmação da historiografia de esquerda, isto é, apresentar Robespierre e os jacobinos, duros porém idealistas; o Terror como mal necessário para consolidar uma revolução ameaçada; Danton como um liberal corrupto e decadente, cuja sede de poder e falta de ideologia poderia colocar em risco as precárias conquistas revolucionárias.”[15] Wajda, diretor polonês dissidente, que nos filmes “O Homem de Mármore” (1977) e O Homem de Ferro” (1981) havia dirigido críticas ao sistema comunista de seu país, concebe em Danton” uma visão do período do Terror que difere do esperado pelo governo francês. Andrzej Wajda humaniza os dois personagens centrais, que tornam-se repletos de ambigüidades e, em certa medida transformam-se em anti-heróis. Danton, interpretado por Gerard Depardieu é, por um lado o herói do povo, o contraponto de uma Revolução que não atendia aos mais humildes, conforme notamos nas cenas iniciais em que os populares sujos e magros disputam um pedaço de pão; é também, por outro lado o glutão decadente que se farta durante uma discussão com Robespierre. Este, representado pelo ator polonês Wojciech Pszoniak, aparece doente e apático. Se é o grande líder da revolução neste período é também ‘frio e neurótico, massacrado por uma lógica política além da sua vontade e poder de manipulação’[16]. O filme apresenta a própria revolução de maneira ambígua, em um momento em que para avançar extermina não só seus inimigos, mas seus filhos.

O POLÍTICO E O SOCIAL NO CINEMA DA REVOLUÇÃO

Lynn Hunt, em seu livro “Política, Cultura e Classe na Revolução Francesa”, traça um panorama da historiografia sobre o tema, constatando que, usualmente, a busca pelas origens e resultados da Revolução superpõem-se ao próprio processo revolucionário e, principalmente, leva a uma redução do papel da política na revolução. Enquanto nas interpretações marxista e tocquevilliana a política da Revolução é determinada pela trajetória necessária das origens aos resultados, nas versões revisionistas a política parece fortuita porque não se encaixa no esquema de origens-resultados. A conseqüência final, porém, é a mesma; a política perde importância como objeto de estudo.”[17] Não se trata exatamente de delimitar se o que ocorreu foi uma revolução política que se reflete na sociedade ou, uma revolução social refletida na política, antes, a intenção é mostrar como política e sociedade aparecem representadas no cinema e o peso a elas conferido nos filmes abordados. Jean Renoir inicia seu filme com uma cena emblemática: Um camponês é preso nas terras do prefeito do vilarejo, acusado de matar um pombo que pertencia a um nobre. Na ocasião de seu julgamento estão o prefeito e o nobre, ao qual cabe a prerrogativa de fazer justiça. Segue-se um trecho do diálogo estabelecido entre os dois: Prefeito - Acha justo mandar alguém para a forca por causa de um pombo? Nobre - O pombo não tem nada a ver com esta história, mas é o símbolo da ordem que eu tenho que defender. Prefeito - Seu símbolo é um tanto magrinho. Se tirarmos as penas não deve pesar muito. Nobre - Se os deixarmos matar nossos pombos, em breve queimarão nossos castelos. O simbolismo explícito e didático do diretor enfatiza o conflito social advindo dos privilégios assegurados à nobreza pelo Antigo Regime, e concebe a questão social como desencadeadora de uma revisão política. Ettore Scola, através da diversidade de opiniões dos personagens de seu filme, problematiza a relação entre o monarca e o povo. Logo antes de chegar a Varennes os ocupantes da diligência discutem o paradeiro do Rei: Industrial – Raptado ou em fuga fez bem em se libertar da tutela jacobina que o mantinha prisioneiro nas Tulherias. Sempre humilhado pela assembléia não era mais que o fantasma de um monarca. Condessa – Mas o povo está com ele. Os humildes o chamam de‘bom papai’. Um pai que está no coração deles e fará uma grande festa quando voltar. La Bretonne – Talvez tenha razão, mas as pessoas mudaram. Os humildes da cidade e os do campo descobriram que são pobres. Industrial – Mas é claro! É natural! Com toda a propaganda revolucionária dos vários clubes! La Brettone – Quanto ao além, começaram a duvidar que depois de mortos os últimos serão mesmo os primeiros. A cena assinala um tema muito caro ao questionamento social e político; a transitoriedade das idéias, seu disseminar, por vezes lento, entre a população e a queda da noção de que uma revolução é constituída apenas de rupturas bruscas. Em Varennes, as coisas parecem indefinidas. Quando o rei -preso, não há como esquecê-lo- é trazido a Paris, um cartaz difundido no caminho diz tudo: ‘Qualquer pessoa que aplaudir o rei será açoitada, quem o insultar será enforcado’. Ele continua um personagem sagrado, e por isso a pena para o insulto é maior do que para o aplauso. Mas, se os óleos da coroação ainda ungem o seu corpo, o poder já lhe escapa.”[18] Rica em elementos culturais da Revolução, como o questionamento religioso surgido do racionalismo, esta passagem traz à tona a questão da propaganda política, presente neste e nos demais filmes, de forma incisiva, através da publicação e leitura de livros, panfletos e periódicos. Em “Danton” assistimos à repressão ao periódico publicado por Camille Desmoulins, e em “Casanova” ao confisco do livro de Thomas Paine, e da literatura erótica que seriam publicados pela filha de Restif de La Brettone, ambas, ilustrações do trabalho desenvolvido por Robert Darnton acerca dos literatos do período. No século XVIII emergiu, na França, o que se poderia chamar de público leitor; a opinião pública ganhou força; e o descontentamento ideológico jorrou, juntamente com outras correntes, para produzir a primeira grande Revolução dos tempos modernos.”[19]

A LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA E O “CINEMA HISTÓRICO”

O cinema, arte fruto da reprodutibilidade técnica, oscila entre os dois pólos de sua natureza: industrial e artística. Nota-se, nos quatro filmes trabalhados, a predominância do veio artístico; são representantes do que se habituou chamar cinema autoral’. Bastante freqüente nos filmes autorais, a metalinguagem, ou seja, o cinema que trata da própria prática ou linguagem cinematográficas, aparece nestas abordagens da Revolução e dialogam, não apenas com a história vivida, mas com o esforço científico para contar esta história[20]. Neste sentido, duas cenas merecem destaque: A primeira, no início de “Casanova e a Revolução” que mostra, às margens do rio Sena, uma trupe de atores que convidam o público a assistir, através da “Maquina do Novo Mundo, aos grandes feitos históricos recentes e antigos”. A máquina, descrita como “o espelho da história”, ilustra os chamados brinquedos ópticos, aparatos de animação de imagens anteriores ao cinematógrafo dos Lumiére. A segunda cena, no início de “Danton” apresenta Robespierre que é penteado e maquiado em seu quarto, por seu barbeiro, processo idêntico ao vivenciado pelos atores de cinema. “Marat/Sade” é um filme inteiramente metalingüístico, uma vez que a própria trama é uma peça teatral. Porém, para remarcar a idéia, o filme inicia com a abertura de uma porta, através da qual o espectador, identificado com a câmera, adentra o cômodo do sanatório no qual será apresentada a peça. A metalinguagem presente nos três filmes apresenta o mesmo fundamento: vem lembrar o espectador de que aquilo que se passará na tela não é um retrato fiel da história, mas a reconstrução e interpretação de um evento passado, pelas vistas de um diretor, um produtor e um roteirista, adaptadas ao cinema. A linguagem de “A Marselhesa”, que se pretende como retrato fiel da Revolução Francesa, é também adequada ao seu propósito. Os episódios retratados no filme são emoldurados por indicadores cronológicos e espaciais, telas em que aparecem escritos o local e a data da ação que se apresentará a seguir, ressaltando a intenção pedagógica do filme. Assim, a linguagem utilizada no cinema indica possíveis vieses da interpretação histórica do cinema e, dá margem a uma leitura crítica da história enquanto construção do conhecimento. Apesar de o historiador e o cineasta se guiarem por objetivos diferentes, visto que o historiador tem por escopo a verdade, seu ofício é, por vezes, semelhante. Conforme nos propõe Marc Bloch o historiador é o cineasta que “desenrola a bobina no sentido inverso das seqüências. [21]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Revolução Francesa tornou-se “um evento da História em permanente julgamento por parte da sociedade e de seus intérpretes”[22] e os trabalhos que buscam retratar suas repercussões são tão amplos e diversos quanto as próprias repercussões. É, no entanto, evidente que tal reflexão não está esgotada e, no cinema, que é expositor da memória constituída mas também construtor de novas impressões, encontramos possíveis interpretações para o período. O filme de Peter Brook, tem o assassínio de Marat como pano de fundo para diversos questionamentos de natureza teórico-filosófica, como o tema, prezado por Michel Foucault, da liberdade civil e do papel punitivo do Estado. O personagem de Sade, no filme relata a maneira com que, em oposição a extermínios barbarescos como o de Damiens, que atentara contra a vida de Luis XV em 1787, a punição fora convertida, durante a Revolução, na figura racionalizada da guilhotina. As próprias personagens centrais do filme são de alto teor simbólico para o questionamento da Revolução. Sade escolheu a figura histórica ideal para seu ‘teatro de tese’: o idealista frustrado da solução coletiva, Marat. Podemos ver Marat e Sade como polaridades opostas das melhores ambições humanas: a salvação coletiva e a salvação individual.”[23] Wajda e Scola também encerram seus filmes com o vislumbre do mundo contemporâneo: Restif de La Bretonne, na cena final de “Casanova e a Revolução”, recita um trecho de sua obra no qual pensa para o futuro da Europa o que seria uma União dos Estados’ e em seguida, caminha pela Paris do século XX. Robespierre, em Danton”, padece em sua cama ao som da ‘Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão’ recitada por um menino, irmão de sua criada. A criança, que decorara o texto forçosamente, entre os tapas da irmã, representa o futuro da Revolução, apreendido pela “pedagogia do Terror”. Levando-se em conta o amplo âmbito das relações entre o cinema e a Revolução Francesa, que perpassa questões como a linguagem cinematográfica e histórica, a política, a sociedade, ou mesmo, a própria reincidência do tema, que adotado pelo cinema desde o início do século XX nunca foi abandonado, é possível constatar que a idéia que se faz da Revolução não está pacificada e, como afirma Michel Vovelle, “nem seu eco totalmente ensurdecido.”[24]

NOTAS

[1] Aluna do 4º Ano de História pela UNESP- Campus Franca. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). O presente artigo foi apresentado como trabalho de conclusão à disciplina de História Contemporânea I, ministrada, no primeiro semestre de 2009, pela Profa. Dra. Márcia Pereira da Silva.

[2] VOVELLE, Michel. A Revolução e a imagem. In: Imagens e Imaginário na História: Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. São Paulo: Editora Ática, 1997. p.162 [3] LEFEBVRE, Georges. A Revolução Francesa. São Paulo: IBRASA, 1989. p.17.
[4] NAPOLITANO, Marcos. A escrita filmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: CAPELATO, Maria Helena; MORRETIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thomé (Orgs). História e Cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007. p. 65.
[5] “Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat conforme executado pelos internos do Asilo de Charenton sob a direção do Marques de Sade” (tradução da autora)
[6] LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: História e Memória. Campinas: Editora UNICAMP, 1990.p. 537. [7] NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit. p. 66.
[8] RENOIR, Jean. O Passado Vivo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p.33.
[9] RENOIR, Jean. Ibid. p.46.
[10] RENOIR, Jean.Ibid. p.46.
[11] LEFEBVRE, Georges. Op. Cit. p.198.
[12] Neste sentido, é válida a comparação entre o Giacomo Casanova de Ettore Scola e o de Frederico Fellini apresentado no filme de 1976 “Il Casanova di Federico Fellini”.
[13] “O Plano picado (filmagem de cima para baixo) tem tendência para tornar o indivíduo ainda mais pequeno, esmagando-o moralmente ao colocá-lo no nível do solo.” MARTIN, Marcel. O papel criador da câmara. In: A Linguagem do Cinema. Lisboa: Dinalivro, 2005. p.51.
[14] “It is a film about the Revolution for the cynical and resigned late-20th century, in which the young are uniformly unsympathetic: ignorant and rude, loud and dogmatic, pompous and arrogant, they strut through villages and read proclamations they do not understand.” ELSAESSER, Thomas. Rendezvous with the French Revolution Ettore Scola’s That night in Varennes. In: European Cinema – Face to Face with Hollywood. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2005. p. 409.
[15] NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit. p. 75.
[16] NAPOLITANO, Marcos.Op. Cit. p. 75-76.
[17] HUNT, Lynn. Uma interpretação da Revolução Francesa. In: Política, Cultura e Classe na Revolução Francesa. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 31. [18] RIBEIRO, Renato Janine. Historiografia de 1789. Jornal Folha de São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009.
[19] DARNTON, Robert. Boemia literária e Revolução: o submundo das letras no Antigo Regime. São Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 11.
[20] Para as diferentes acepções do termo ‘história’ foi consultada a obra LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora UNICAMP, 1990.
[21] BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Oficio do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 67.
[22] LINHARES, Maria Yedda. A historiografia da Revolução Francesa: um retrospecto. In: Análise e Conjuntura. Belo Horizonte, v. 4, n. 2.3 maio/dezembro 1989.
[23] BRODY, Paulo. A Opção do Diretor: considerações sobre a encenação de “Marat-Sade” por Peter Brook. In: Cadernos de Semiótica Aplicada, Vol. 3, n. 2, dezembro de 2005. p.5.
[24] VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa e seu eco. Estudos avançados., Agosto 1989, vol.3, no.6, p.45.


[a seguir, publico o texto de Clarissa Ramos, Luciano Gomes e Vinícius Medeiros]

DANTON, O PROCESSO DA REVOLUÇÃO, por Clarissa Ramos, Luciano Gomes e Vinicius Medeiros

Danton, França/Polônia, 1983, Direção: Andrzej Wajda, 131 min.
 
I. O Filme: Danton X Robespierre
O filme “Danton, O Processo da Revolução” se passa no Ano II da Revolução e conta uma parte importante da história desse evento e de dois personagens de destaque: Georges Danton e Maximillien de Robespierre. É a primavera de 1794 e a França vive o período do Terror, enquanto isso o povo sofre com a falta de comida.
Danton surge no filme como uma figura popular e querida pelo povo. Ao chegar à Convenção vemos sua posição de influência e bom-senso, que deseja acabar com o Terror que ajudou a instituir. Do outro lado, temos Robespierre e o conhecemos em uma reunião com seus aliados. De início o vemos como uma pessoa que tenta ser moderada, o que mudará completamente ao longo do filme. Robespierre, o homem que lutou pela Revolução e agora no poder, parece ter sido tomado por ele e faz de tudo para manter sua posição e garantir o processo revolucionário.
O filme coloca esses dois personagens em oposição. Cada um a seu modo usa os princípios da Revolução - igualdade e liberdade – para defender suas idéias. Danton quer que eles sejam utilizados para felicidade do povo e acusa Robespierre de ignorar esses ideais e levar à guilhotina aqueles que não pensam como ele. Já Robespierre faz do princípio da igualdade a justificativa para levar a prisão Danton, um dos expoentes da Revolução.
Figuras 1 e 2: Retrato de Maximillien de Robespierre (óleo sobre tecido; Artista Desconhecido; Museu Carnavalet) Retrato de Georges Danton (óleo sobre tecido;Constance-Marie Charpentier. Museu Carnavalet.).
Podemos observar nas reuniões os bastidores das tomadas de decisões e as questões levantadas, como a popularidade de Danton, a imagem da Revolução e a preocupação com a opinião pública. A imprensa é um fator importante pelo modo como noticia fatos, um exemplo está na destruição da gráfica de onde sai o jornal de Desmoulins e na proibição de fazer anotações durante o julgamento.
Gradativamente vemos que Danton passa de incômodo a grande obstáculo ao projeto de poder, em particular de Robespierre. Para facilitar os planos do governo é construída uma acusação que leve Danton à morte. Durante seu julgamento ainda é adicionado um suposto complô de seus amigos para libertá-lo e pôr fim à república. Aqui assistimos a uma das marcas do Terror: condenar cidadãos sem provas concretas.
O filme começa e termina com uma cena parecida, um menino sendo obrigado a decorar os artigos dos Direitos do Homem do Cidadão - que pode ser interpretado como um questionamento sobre a Revolução. Será que a Revolução se tornou uma simples declamação de princípios e direitos em vez de uma vontade real de que eles sejam aplicados de forma justa? Será que em nome dos princípios da Revolução a própria revolução foi esquecida como tenta passar a mensagem do filme?
 
II. O contexto histórico: Danton, o terror e a revolução
Para conhecer melhor sobre um indivíduo é necessário que tenhamos conhecimentos do contexto em que ele viveu, ou seja: sua época e as possibilidades de escolha que ela proporcionara, além das relações econômicas, políticas e culturais de sua sociedade. Georges Danton viveu na França durante a chamada Revolução Francesa, onde em pouco tempo grandes mudanças ocorreram na sociedade, deixando heranças até os dias atuais. Mas o que podemos entender como revolução? Quando e como ocorreu essa revolução? Que modificações profundas aconteceram? Qual a relação de Danton com esse evento? Bom, tentaremos aqui responder essas questões.
Podemos entender como revolução um processo de mudança das estruturas sociais. Mesmo sendo de uso comum em nossos dias, ao longo de sua história a palavra revolução já carregou inúmeros significados. Surgida no período do Renascimento, se referiu primeiramente ao movimento giratório recorrente dos corpos celestes. Já durante o século XVII na chamada Revolução Inglesa passou a ser entendida como o retorno a uma ordem política anterior que havia sido alterada. Somente no século XVIII que seu sentido mudaria completamente. As Revoluções americana e francesa deram ao termo uma nova acepção: mudança estrutural, agitada e rebelde, ou seja, uma ruptura radical em uma ordem até então dominante
A Revolução Francesa se iniciou durante a segunda metade do século XVIII. A França passava por uma grave crise econômica. As inúmeras guerras empobreceram o tesouro nacional e  os altos impostos, o aumento excessivo dos preços dos alimentos e as péssimas colheitas, causavam fome e miséria. Como medida para solucionar a crise, o Rei Luís XVI convocou, em 1° de maio de 1789, os Estados Gerais, ou seja, os estados que dividiam a sociedade jurídica e culturalmente desde a Idade Média. Dessa maneira, os representantes das três ordens — 1° Estado (nobreza), 2° Estado (clero) e 3° Estado (povo) —, se reuniriam para discutir e decidir os assuntos de interesse nacional. Mas, isso só serviu para o aumento das tensões, pois, ficaram claros os diferentes interesses dos grupos. Enquanto a nobreza e o clero se preocupavam com a expansão dos seus privilégios, os burgueses e camponeses lutavam pela extinção desses. Não concordando com a ordem dada por Luis XVI para dissolver os Estados Gerais, o Terceiro Estado, em 9 de Junho de 1789, instaurou a Assembléia Nacional Constituinte, que tinha como objetivo votar uma Constituição que colocasse fim aos poderes e privilégios da nobreza e do clero. O Rei não ficou parado, concentrando as tropas ao redor de Paris para prender os deputados. Essa atitude causou um motim popular e, em 14 de Julho de 1789, o povo de Paris tomou a fortaleza da Bastilha, uma prisão e depósito de armas, e improvisou uma guarda nacional e uma nova administração para a cidade. Estava iniciada a Revolução.
Esse processo revolucionário modificou profundamente as bases da sociedade francesa. Trataremos aqui de algumas dessas reformas. A Igreja e a nobreza foram os grandes alvos dos revolucionários. Foram abolidos os privilégios feudais e os nobres perderam seus títulos e brasões. O clero foi reorganizado, passando a ter seus bispos eleitos pelo povo, além de perder o dízimo e ter seus bens confiscados. No dia 26 de Agosto de 1789 foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que baseada nas idéias de liberdade, igualdade (civil) e fraternidade proclamou, entre outras coisas, o direito de resistir à opressão. “Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis”, dizia o seu primeiro artigo. Isso deixa clara a diferença para o período anterior à revolução em que nobres e clérigos possuíam um tratamento diferenciado. Enfim, muitas outras reformas continuariam a ser implantadas até a conclusão do processo, promovendo a retirada da nobreza do poder e derrotando o Antigo Regime na França.
A “Tomada da Bastilha” (37,8 x 50,5; Biblioteca Nacional da França). No centro, a prisão do marquês de Launay Aquarela Jean-Pierre Houël
Apesar de todas as sociedades humanas mudarem ao longo do tempo, não podemos negar que viver na França durante a revolução era estar diante de muitas novidades. E é nessa atmosfera de rupturas e continuidades, certezas e incertezas que encontramos Georges Jacques Danton. Nascido em 1759, o até então advogado Danton aderiu a Revolução  desde seu início. Fez parte de um dos principais clubes políticos que atuaram na Assembléia Constituinte, a Sociedade dos Amigos da Constituição, que se reunia no refeitório do convento dos Jacobinos e que se tornaria a ala mais radical da revolução.
Interior de um Comitê Revolucionário sob o Terror (gravura; 27,6 x 34,5; Centre Historique des Archives Nationale). Gravura de C.N. Malapeau, 1797
O processo revolucionário havia levado ao poder uma Monarquia Constitucional, onde os principais deputados eram de uma ala menos radical, os girondinos, vindos principalmente da região da Gironda (Bordeús). Esse governo havia declarado guerra contra a Prússia e Áustria e vinha sofrendo sucessivas derrotas. Com a pátria em perigo o processo revolucionário se acelera, transformando-se em uma guerra civil. Em 10 de Agosto de 1792, uma insurreição popular instala um governo jacobino que se concentra em derrotar os exércitos dos  inimigos externos e identificar os internos. Danton teve uma importante participação ao lado de Maximilien Robespierre na articulação desse evento, sendo nomeado Ministro da Justiça. Em 20 de setembro de 1792, a Monarquia é abolida e toma posse a Convenção Nacional, é decretado assim o ano I República. Em 21 de janeiro de 1793, o Rei Luis XVI foi guilhotinado, Danton teve novamente um papel  importante sendo um dos que votaram por sua morte. Esse foi o período mais radical de toda a revolução, o Grande Terror (1793-1794) que levou à guilhotina milhares de pessoas. O mesmo Georges Danton que contribuiu de forma decisiva para pôr em movimento esse mecanismo de punição através do Tribunal Revolucionário foi uma das vítimas desse período. Sua insatisfação com a Ditadura do Terror e as mortes daqueles que não concordavam com suas idéias, o fizeram ir contra a visão dominante e pedir o fim do Terror. Como resultado de suas articulações contra o governo foi guilhotinado em 5 de abril de 1794, pouco tempo antes dos seus executores que no fim de julho seriam mortos e substituídos por um outro modelo de governo.
III. Cinema e História: as aspirações do presente na representação do passado
Ao ver o filme Danton pela primeira vez, a imagem e o som são capazes de falar mais alto, pois a forma é o meio principal com o qual o Cinema atua na área da imaginação. Tendo um conhecimento histórico prévio, saberíamos que aquele contexto se refere à Revolução Francesa, num recorte que remonta ao período do Terror e à atuação do Comitê de Salvação Pública. Nesse primeiro momento, estaríamos prontos para afirmar com convicção que o filme é histórico, pois retrata o final do século XVIII francês com um dos maiores acontecimentos da humanidade – todos os setores de produção do filme, desde o roteiro até a direção de arte, ajudam a firmar essa representação do passado. Mas dificilmente nos daríamos conta da ideologia de uma sociedade, que é expressa por trás das imagens.
Essa ideologia está ligada ao contexto histórico implicitamente contido no filme de Wajda, concernente à sociedade polonesa no início da década de 1980. Sob o regime socialista e na órbita soviética após a Segunda Guerra Mundial, Polônia estava mergulhada numa grave crise econômica. Um movimento de oposição polonês é formado, com a liderança do grupo sindical Solidariedade, responsável por inúmeras greves nas cidades portuárias. Nessa época a Lei Marcial é decretada, tornando ilegal o Solidariedade e prendendo os principais líderes. Ora, grande parte da equipe responsável por Danton era polonesa, inclusive o próprio diretor e as co-roteiristas. Wajda era um grande apoiador do Solidariedade, membro do Conselho Consultivo de 1981 a 1989 – mais tarde, quando o grupo é reconhecido e seu líder Lech Walesa se torna presidente, Wajda passa a ser o senador da República da Polônia (1989-91). Sendo assim, a ideologia político-social se reflete na obra cinematográfica e Danton, ao mostrar o processo revolucionário na França, estabelece uma conexão imediata com o presente, tanto que o filme foi capaz de gerar muita polêmica na época de seu lançamento.
Tal polêmica ia de encontro à questão do socialismo soviético, isto é, o socialismo autoritário que teria no stalinismo seu maior expoente. Isso porque o filme, de certa forma, mostra-se como um contraponto à Revolução Russa – o que é justificável, se entendermos este grande evento como o iniciador de um processo que teria futuras conseqüências na Polônia, onde a União Soviética instituiria o regime comunista, assim como nos outros países do Leste Europeu. Sendo assim, a própria trama cinematográfica muda pontos interessantes da peça de Stanislawa Przybyszewska, O Caso Danton, na qual o filme é baseado.
A adaptação é interessante por desestruturar o Robespierre da teatróloga, caracterizado como incorruptível e por quem a autora reserva grandes simpatias – no filme, seu caráter é convertido num fanatismo doentio, capaz de levar até mesmo os principais líderes da Revolução à forca (ora, Stalin não agiu de forma semelhante quando do expurgo nos quadros partidários, ou mesmo em relação às milhares de pessoas mortas, torturadas ou feitas prisioneiras?). A associação com Stalin se faz evidente também na cena em que, ao examinar o quadro do pintor Louis David, Robespierre manda que seu artista retire o rosto de Fabre, revolucionário que será guilhotinado – Stalin mandaria retirar o rosto de Trotsky das fotografias e filmes sobre a Revolução Russa.
A mudança do caráter de Robespierre na adaptação para o cinema mostra-se conveniente para o projeto, forjando uma crítica à violência do socialismo soviético e sua função reguladora na Polônia, sendo a Revolução Francesa o plano de fundo para tal confrontação – e aqui Wajda demonstra seu constante moralismo na direção de filmes políticos, com o intuito de mostrar como o socialismo não conseguiu se associar nem à liberdade nem à igualdade.
O projeto estava previsto para ser rodado na Polônia, mas o governo socialista decretou a proibição de ajuntamentos de mais de três pessoas, o que tornou a produção no país impossível. O ator Gérard Depardieu (Danton) assistiu às lutas na Polônia, assim como o polonês Wojciech Pszoniak (Robespierre), o que, segundo o diretor, possibilitou que o teor da revolução fosse mostrado em cena através das atuações. O filme coloca em questão a oposição entre Danton e Robespierre. A dualidade é estabelecida na medida em que um personagem possui características diferentes das do outro, promovendo uma dicotomia que pode ser considerada um dos pontos centrais da trama.
Sendo assim, Danton aparece como um revolucionário querido pelas massas, alguém que quando passa é capaz de gerar grande movimento popular – seus trejeitos e maneirismos, além de sua própria aparência desleixada, que às vezes beira à falta de educação se comparada aos nossos padrões atuais, o tornam uma figura facilmente assimilável. Em contrapartida, Robespierre surge como um homem fraco de saúde e com uma aparência tomada pela enfermidade – essa caracterização, no entanto, é facilmente suprimida pelo pó-de-arroz que lhe é aplicado no rosto e por suas formosas vestimentas. Há momentos em que a trama satiriza Robespierre, como no momento em que, impondo a voz para converter aqueles que são favoráveis a Danton na Convenção, ele precisa ficar na ponta dos dedos para que seja satisfatoriamente visto e ouvido. Percebe-se, portanto, a defesa dos princípios de Danton promovida pelos realizadores do filme – o próprio cartaz de divulgação na época do lançamento é capaz de colocar em evidência o propósito do projeto, mostrando o protagonista como um herói (seu cabelo esvoaçado toma proporções que formam claramente uma auréola, levando ao plano até mesmo da mitificação).
Enfim, a oposição entre os dois acaba por revelar a ideologia latente da sociedade polonesa no início da década de 80. A figura de Danton lembra fortemente a perspectiva do grupo Solidariedade – o primeiro luta contra o Grande Terror e seu conhecido líder, já o segundo combate o governo socialista polonês. Por trazer à tona um indivíduo que luta pelo que considera justo e ideal, num caminho oposto ao que prega o sistema vigente, Danton – O Processo da Revolução mostra como o Cinema não é apenas produto social, mas também um agente da história, buscando representar o passado, mas em consonância com o presente e suas aspirações.
 
IV. Documento de época: Alguns artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
França, 26 de agosto de 1789
“Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre permanentemente seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser a qualquer momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.
Em razão disto, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob a égide do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:
Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.
Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.
Art. 5.º A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.
Art. 11.º A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei.
Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização.
 
Referências Bibliográficas ALMEIDA, Mônica. História e Cinema: um debate metodológico. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), FGV. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/106.pdf. Acesso em: 26 out. 2009.
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 O diretor do filme "Danton", o polonês Andrzej Wajda (1926)