![Cena do filme Barrabás / Reprodução](http://www.revistadehistoria.com.br/uploads/docs/images/images/barabbas4g.jpg)
Cena do filme Barrabás / Reprodução
[re-publico o texto de Marcello Scarrone "O homem que não podia morrer"
sobre o filme italiano de 1961, "Barabba"
(Barrabás), sob direção de Richard Fleischer. o texto original está na seção Cine História da Revista de História.com.br]
O homem que não podia morrer
Os últimos dias da vida de Jesus foram representados inúmeras vezes
no cinema. O drama épico ‘Barrabás’, clássico dos anos 1960, conta a
história do sujeito que foi salvo, literalmente, pela morte de Cristo
Marcello Scarrone
![Reprodução](http://www.revistadehistoria.com.br/uploads/docs/images/images/barabbas%202.jpg)
Muitas vezes e com abordagens diferentes o cinema se aproximou dos
eventos históricos ligados às raízes do cristianismo. Tema presente de
forma preponderante na arte figurativa sobretudo do mundo ocidental, da
Idade Media à Renascença, do barroco aos estilos posteriores, tanto na
representação do nascimento de Cristo quanto na transposição sobre tela,
parede ou tapeçaria de milagres ou pregações dele, a fé cristã e os
fatos que estão em sua origem encontraram tratamentos pictóricos dos
mais variados. Como dito, também a sétima arte se interessou do objeto, e
como aconteceu pelas outras formas artísticas, os resultados foram dos
mais diversificados. Mas uma coisa salta aos olhos: o peso decididamente
superior que em todas as releituras artísticas têm os últimos dias da
vida de Jesus, isto é, os eventos ligados à sua paixão, sua morte de
cruz e sua misteriosa ressurreição.
De Nicholas Rey (“O Rei dos Reis”, 1961) a Scorsese (“A Última Tentação
de Cristo”, 1988), de Zeffirelli (“Jesus de Nazaré”, 1977) a Denys
Arcand (“Jesus de Montreal”, 1989), passando por musicais como “Jesus
Cristo Superstar” (1974) e até chegar a Mel Gibson (“A Paixão de
Cristo”, 2004), a representação cinematográfica daqueles momentos finais
desafiou vários diretores. Sem falar de outras produções que tocaram no
tema da Páscoa cristã de forma tangencial, como o interessantíssimo “A
Investigação” (1986), de Damiano Damiani, com o “tarantiniano” Harvey
Keitel no papel de um Pilátos empenhado na tentativa de camuflar os
indícios da ressurreição, ou o próprio “Ben-Hur” (1959), drama épico de
Wyler. Nesta linha se coloca também “Barrabás”, filme de Richard
Fleischer de 1961.
Marcado pela vida inteira por aquilo que lhe ocorrera, isto é, sua
misteriosa e incompreensível libertação pela autoridade romana em
ocasião da condenação à morte de Jesus Nazareno, o ladrão e assassino
Barrabás vive o resto de sua existência carregando um estigma. Não mais o
estigma de seus crimes que o levaram à captura e prisão, e sim o de ser
um “agraciado”. O primeiro homem a ser salvo, literalmente, pela morte
de Cristo. O primeiro homem para o qual a perspectiva da própria morte é
afastada graças à morte do outro. Barrabás, por causa disso, acaba
sendo um deslocado, tendo sua identidade alterada. Entre seus antigos
companheiros de crimes e rapinas, não encontra mais acolhida. Os
seguidores de Jesus o veem como o que causou, mesmo que de forma
indireta, a morte do Mestre. Não há mais lugar para ele no mundo que
conhecia.
Mesmo assim, sua vida vai seguindo, e, entre um evento e outro, acaba
percorrendo, quase sem querer, as pegadas daquele que o libertou. Em
várias ocasiões se depara com pessoas que encontraram e conheceram
aquele homem, aquele estranho profeta: do apóstolo Pedro a Lázaro, o
homem que Jesus ressuscitara dos mortos; de sua antiga companheira,
agora convertida e até apedrejada por isso, a um prisioneiro e condenado
como ele que carrega no pescoço uma cruz. Sim, porque Barrabás ainda é
homem de impulsos repentinos, e por defender violentamente sua
companheira, é novamente preso: e mais uma vez “agraciado”, pois ao
invés da sentença capital, lhe cabe uma condenação aos trabalhos nas
minas da Sicília. Aqui, o encontro com outro condenado, que de Cristo é
seguidor, o inquieta. Amarrados à mesma corrente, Barrabás e o
companheiro são os únicos sobreviventes de um terremoto: salvo mais uma
vez. E, enfim, a transferência dos dois para Roma, a capital do Império,
para servir como gladiadores na arena. Aqui, tempos depois, a luta com o
líder do grupo, até então invicto, e sua improvável vitória que leva o
imperador Nero a libertá-lo. A morte parece fugir diante dele: não há
evento natural ou justiça humana que parece capaz de elimina-lo da
existência.
Contínuos
episódios de graça, de salvação. Mas Barrabás não é homem de fé, não
entende o que está passando na trama de sua vida. Nem o martírio do
amigo o faz confessar a fé cristã: diante do governador romano, declara
não ter nenhum tipo de crença. Desnorteado, incrédulo, é o símbolo do
homem que não tem um deus, mas que o busca. Está sozinho perante e vida e
a morte, e também sua passagem pelas catacumbas, local de sepultura
cristão e de memória, se torna quase um pesadelo, do qual quer escapar.
Sua derradeira adesão à ação dos discípulos de Cristo, acusados pela voz
pública de estarem colocando fogo na cidade, soa como uma atrapalhada e
confusa tentativa de entender, de fazer algo para responder ao mistério
daquele homem que ele não conheceu mas que está tão presente na sua
vida. De uma vida sem deus, como era a dele antes, para uma vida ainda
sem deus, mas que talvez o busque.
O final fica aberto a várias interpretações. Mas o filme se coloca como
a parábola do ser humano diante do infinito, do divino, do outro diante
de si. Crer, se abandonar, aceitar e seguir, ou lutar se rebelando e
negando. Ou ainda buscar, como Barrabás, sem, todavia, chegar ao fim, se
abrir tentando entender, mesmo chegando somente no limiar da fé. Um
homem que admite seu agnosticismo, que gostaria talvez de crer, mas que
fica nisso. Ou não?
O filme, realizado nos estúdios romanos de Cinecittá, conta também com a
intensa interpretação de Anthony Quinn, rosto mexicano emprestado a um
judeu rebelde (no filme de Zeffirelli, anos depois, ele mesmo
interpretará o sumo sacerdote Caifás). A produção é uma adaptação para
as telas do romance homônimo do escritor sueco Pär Lagerqvist, que lhe
valeu o premio Nobel de 1951. Agnóstico como o seu personagem principal,
Lagerqvist transpõe para a página escrita sua pessoal inquietação
diante do infinito, sua dúvidas, seu laico deter-se no limiar da fé. Um
poema dele pode dar pistas para a leitura de sua obra assim como da
película que apresentamos.
É meu Amigo um desconhecido, alguém que não conheço. / Um
desconhecido distante, distante. / Por ele o meu coração está cheio de
saudades / Por que ele não está junto a mim? / Talvez porque não exista
de verdade? / Quem és tu que preenches o meu coração com tua ausência? /
Que preenches toda a terra com a tua ausência?