Filme sobre Capitalismo é outra verdade inconveniente?, por Carole Cadwalladr
"Inequality for All" ("desigualdade para todos", em tradução livre) é,
de certa forma, o filme do momento. Estamos vivendo tempos tumultuados. A
economia afundou. A austeridade rasgou o país. Estamos à beira de uma
reincidência da reincidência da recessão. E, em um universo paralelo,
uma pequena corte de seres alienígenas --a quem conhecemos como
banqueiros-- está atualmente absorta em tentar descobrir com que gastar
seus bônus multimilionários. Quem não iria querer saber o que está
acontecendo? Ou como isso aconteceu? Ou por quê? Ou se é realmente
verdade que a próxima geração está definitivamente ferrada?
Mesmo assim, quem seria o mala que tentaria fazer um filme sobre isso?
Não é exatamente um "Skyfall". Por onde você começaria? Há alguns filmes
que praticamente imploram por ser feitos. E há "Inequality for All", o
tipo de filme que não dá realmente para acreditar que alguém algum dia
tenha considerado ser uma boa ideia, quanto menos algo a que dedicar a
paixão e o compromisso de dois anos da sua vida.
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Victoria Will - 21.jan.13/Associated Press |
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Secretário do Trabalho durante o governo Clinton, o economista Robert Reich é a estrela de "Inequality For All" |
"Como é que alguém tem a ideia de fazer um filme sobre economia?",
pergunto ao diretor Jacob Kornbluth. "Eu sei! As pessoas reviravam os
olhos quando eu contava a elas. Diziam que é uma ideia péssima para um
filme." De fato, no papel é uma ideia péssima. Um documentário de 90
minutos sobre a desigualdade de renda: ou por que os ricos ficaram mais
ricos e o restante de nós não ficou (digo "nós" porque, embora seja
focado nos EUA, estamos [na Grã-Bretanha] nos calcanhares deles), e que
traça uma linha que remonta à década de 1970, quando as coisas pararam
de melhorar para a vasta maioria dos trabalhadores comuns, e começaram a
piorar.
"Sempre soava muito seco", diz Kornbluth. "Mas aí eu dizia às pessoas
que é 'Uma Verdade Inconveniente' para a economia, e elas faziam:
'Ah!'."
Na verdade, "Inequality for All", que estreou no mês passado no Festival
de Sundance, no Estado de Utah, não tem nada de seco. Ele conquistou
não só elogios entusiasmados da crítica como também o prêmio especial do
júri e um grande acordo de distribuição nos cinemas, e, embora tenha
uma óbvia dívida com "Uma Verdade Inconveniente", de Al Gore, ele é sob
muitos aspectos um filme melhor, mais humano e mais surpreendente. No
mínimo porque, por incrível que pareça, ele é realmente bastante
divertido. E isso se deve em grande parte ao seu astro, Robert Reich.
Reich não é um astro sob nenhum sentido óbvio da palavra. É um acadêmico
de 66 anos. E há mais de três décadas se debate contra a desigualdade. A
certa altura do filme ele parece bastante desanimado e diz: "Às vezes
sinto que minha vida é um fracasso total". Imagens de arquivo dele na
CNN em 1991, com o rosto jovial e uma basta cabeleira, mostram que ele
está falando literalmente a mesma coisa década após década. E mesmo
assim, como ele me diz alegremente pelo telefone da sua casa, na
Califórnia, "só está piorando!".
Hoje em dia ele leciona políticas públicas na Universidade da
Califórnia, em Berkeley, e, embora não seja uma figura com a qual
estejamos familiarizados no Reino Unido, ele é há anos parte da vida
pública americana. No começo do filme, ele se apresenta numa sala de
conferências cheia de estudantes, dizendo a eles que foi secretário do
Trabalho no governo de Bill Clinton. "E antes disso estive em Harvard. E
antes disso fui membro do governo Carter. Vocês não se lembram do
governo Carter, né?" Os estudantes permanecem em silêncio. "E antes
disso", diz Reich com impecável "timing" cômico, "fui agente especial de
Abraham Lincoln". Ele balança a cabeça. "Eram tempos difíceis."
Os livros e ideias de Reich estão há uma geração na linha de frente do
pensamento do Partido Democrata. Ele é um peso-pesado intelectual, um
experiente formulador de políticas, um político tarimbado, e ainda por
cima tem a presença de um comediante de "stand-up". Suas ideias serviram
de base para o slogan eleitoral de Bill Clinton em 1992, "Colocando as
pessoas em primeiro lugar" (ambos foram bolsistas Rhodes, e ele conheceu
Clinton a bordo do navio para a Inglaterra; ele certa vez também saiu
com Hillary, mas só se deu conta disso quando um jornalista do "New York
Times" telefonou e o lembrou do fato).
E elas continuavam lá no mês passado, no coração do discurso de posse do
presidente Barack Obama. Os EUA não poderão ter sucesso, disse Obama,
"quando um grupo pequeno e cada vez mais reduzido vai bem, e um grupo
grande e crescente mal consegue se sustentar". Basicamente o que Reich
está dizendo desde o princípio.
O mais extraordinário é como, de certa forma, essas ideias foram
traduzidas em uma narrativa que dá todos os sinais de ser o documentário
de maior sucesso neste ano. Isso certamente chocou Reich. Ele disse que
ficou deslumbrado quando Kornbluth lhe apresentou pela primeira vez a
ideia de um filme. "Ele chegou e disse que tinha lido o meu livro
'Aftershock', que tinha adorado e queria fazer um filme a a partir dele.
E honestamente eu não sabia o que ele queria dizer. Como ele iria fazer
um filme a partir disso?"
Mas Kornbluth fez um filme a partir disso. E um filme assombrosamente
bom, que aborda algumas boas ideias econômicas e como elas se relacionam
com a qualidade da vida cotidiana tal qual vivida pela maioria das
pessoas comuns. O amor, o cuidado e o viés artístico que Kornbluth
imprimiu ao filme estão visíveis em cada fotograma. Foi um trabalho
realmente árduo, me diz ele, fazer algo parecer tão simples. Só que "eu
cresci pobre, então sempre estive muito ciente de quem tem o que na
sociedade". Seu pai teve um derrame quando Kornbluth tinha cinco anos, e
morreu seis anos depois. E sua mãe, que não trabalhava porque estava
criando três filhos, morreu quando ele tinha 18.
Qualquer sinopse do filme corre o risco de fazê-lo parecer novamente
seco, mas basicamente ele descreve como a classe média passou a deter
uma porção cada vez menor da torta econômica. E como, já que 70% da
economia se baseia na aquisição de coisas pela classe média, ela não
pode crescer se a classe média não tiver dinheiro para comprar essas
coisas. Enquanto isso, o governo permitiu que os super-ricos, o "1%",
detivessem uma maior parcela da riqueza nacional. Metade do patrimônio
total dos EUA é atualmente propriedade de apenas 400 pessoas --400!--, e
Reich argumenta que isso não é só uma ameaça à economia, mas também à
democracia.
Kornbluth me diz que inicialmente teve a ideia de escalar Reich para um
longa-metragem de ficção. "Eu o havia visto na TV e pensei que ele daria
um grande inspetor tributário nesse filme que eu estava fazendo.
Embora, na verdade, ele tenha se revelado um péssimo ator. Mas nós nos
demos bem. E eu descobri que ele e eu partilhamos de certo senso de
humor. Não sou documentarista. Minha origem é a comédia. No entanto,
pensei que esse poderia ser um filme incrivelmente interessante. Para
mim, é a história mais importante da nossa época. E ninguém a estava
contando. Eu ficava lendo os jornais, vendo o noticiário, e realmente
queria uma história. Ansiava por ela. Eu só sabia que, para fazê-la,
teríamos de torná-la a mais engraçada e humana possível."
E é isso --o humor sutil que está no coração do filme, a leveza da sua
direção-- que são os ingredientes vencedores, disfarçando o que é, na
verdade, incrivelmente poderoso. No coração de "Inequality for All" há
um filme revolucionário. Ou pelo menos seu encarecido desejo de
precipitar uma revolução na forma pela qual pensamos as questões
econômicas. Como me diz Reich, "a economia não é como o clima". Não é
inevitável. Não é determinada. "Uma economia não existe na natureza. Não
precisamos nos contentar." E, o que é mais crucial, ela pode ser
alterada.
Mas o golpe mais brilhante do filme é colocar Reich, o herói improvável,
no centro. "Eu nunca havia feito nada político antes", diz Kornbluth.
"Não me considero político. Mas ver seu exemplo, a forma como ele tem
lutado essa luta há tantos anos, foi uma inspiração absoluta para mim.
Vejo isso nos alunos dele, eles realmente saem das palestras dele e
querem mudar o mundo."
A GRANDE PROSPERIDADE
Como em "Uma Verdade Inconveniente" --ou "a mais lucrativa apresentação
em Power Point na história", como descreveu um crítico--, o filme está
estruturado ao redor de uma palestra, ou melhor, de uma série de
palestras: a incrivelmente popular aula sobre riqueza e pobreza que
Reich dá em Berkeley.
Mas isso é usado apenas vagamente como um veículo.
Há também trechos de noticiários, entrevistas, gráficos estilizados e
imagens de arquivo.
O que o filme tenta fazer é tecer as provas daquilo que muita gente já
conhece --a luta cada vez maior da classe média para simplesmente
subsistir, a forma como o 1% no topo da sociedade se desgarrou do resto
de nós e viu sua renda crescer exponencialmente, e o custo cada vez
maior das tradicionais avenidas para melhorias, como o ensino superior
--e costurar isso em uma narrativa coesa e convincente. É, sob certos
aspectos, uma teoria de tudo. Reich mapeia as três décadas de uma renda
mediana em expansão depois da Segunda Guerra Mundial, um período que ele
chama de "a grande prosperidade", e então examina o que aconteceu no
final da década de 1970 para dar um fim nisso. A economia não claudicou.
Ela continuou crescendo. Mas os salários não.
As cifras que Reich apresenta são simplesmente alucinantes. Em 1978, o
típico trabalhador homem nos EUA ganhava US$ 48 mil por ano (valor
ajustado pela inflação). Enquanto isso, a pessoa média no 1% superior
ganhava US$ 390 mil. Em 2010, o salário mediano já havia despencado para
US$ 33 mil, mas no topo a renda havia quase triplicado, para US$ 1,1
milhão. "Algo aconteceu no final da década de 1970", ouvimos Reich dizer
na sua aula em Berkeley. E grande parte do resto do filme consiste em
descobrir o que aconteceu.
Alguma desigualdade é inevitável, diz ele. Mesmo desejável. É o que faz o
capitalismo pulsar. Mas em que ponto ela se torna um problema? Quando a
classe média (no seu sentido americano, os 25% acima e abaixo do
salário mediano) tem tão pouco da torta econômica que isso afeta não só
as suas vidas, mas também a economia como um todo.
A tese de Reich é que desde a década de 1970 uma combinação de leis
contra os sindicatos e desregulamentação dos mercados contribuiu para
criar uma situação em que a economia floresceu, mas menos riqueza se
filtrou para baixo. Durante um tempo, ninguém notou. Havia "mecanismos
para lidar" com isso.
Mais mulheres entraram na força de trabalho, criando famílias com renda
dupla. As jornadas de trabalho aumentaram. E os aumentos dos preços
imobiliários permitiram que as pessoas contraíssem empréstimos.
Aí, em 2007, tudo isso parou de repente. "Já exaurimos todas as opções", diz ele. Não há mais para onde ir. É a hora do aperto.
É a hora do aperto que tantas famílias trabalhadoras compreendem tão
bem. Elas podem não estar familiarizadas com a teoria da desigualdade de
renda, mas não puderam deixar de notar que estão com menos dinheiro nos
seus bolsos. "Sempre achei que a economia da mesa da cozinha é o tópico
mais importante para a maioria das pessoas", diz Reich. "Seus salários,
seus empregos, subsistir. Sempre tentei relacionar a economia com onde
as pessoas vivem. Por isso fiquei tão entusiasmado com o filme."
As histórias humanas de famílias americanas trabalhadoras lutando para
se ajustar estão no centro emocional do filme. Numa conversa com
espectadores após a exibição em Sundance, um terço da plateia admitiu
ter chorado em algum momento do documentário.
Há por exemplo o caso de Erika e Robert Vaclav, que pagam US$ 400 por
semana para manter sua filha numa creche depois do horário escolar, para
que Erika possa trabalhar como caixa na Costco. "Estou tentando
resolver se devo comprar um celular para ela, para que ela possa ir
andando da escola para casa sozinha, e eu fique sabendo que ela está
bem, ou se devo continuar pagando", diz ela. A família perdeu sua casa
quando Robert foi cortado do seu emprego como gerente da hoje extinta
distribuidora elétrica Circuit City. E, como gradualmente transparece,
ele é aluno da aula de pobreza e riqueza de Reich em Berkeley.
"Quanto dinheiro você tem na sua conta corrente?", pergunta Kornbluth em
off a Erika, enquanto ela leva a filha de carro para a escola. "US$
25", ela responde, e sua voz fica embargada.
Uma das grandes fontes de humor para Reich é ele próprio. Nos planos
iniciais do filme, a câmera o acompanha caminhando até seu carro, um
Mini Cooper. "Meio que me identifico com ele", afirma. "É bem
pequenininho. Eu sinto que estamos em proporção. Eu e meu carro. Estamos
juntos enfrentando o resto do mundo."
Mais tarde, ele tira uma caixa do banco de trás do carro. "Sempre viajo
com minha caixa", diz ele, explicando que sofre de um raro distúrbio
genético --a doença de Fairbank-- que o levou a crescer só até 1,47 m. A
caixa é o que ele sempre leva a eventos onde falará em público, para
poder subir ao púlpito.
Ele era importunado quando criança "porque é isso que acontece quando
você é pequeno", e foi repetidamente surrado. Sua avó o consolava
dizendo que quando ele tivesse 10, 11 ou 12 anos iria esticar. Ele não
esticou. "Nunca foi uma coisa consciente da minha parte, mas essa
sensação de ser alvo de 'bullying', de me sentir vulnerável, continuou
comigo. E talvez seja por causa disso que posso ter empatia com os
pobres. Porque eles são os mais vulneráveis. Não há ninguém para
protegê-los."
No filme, ele conta como fez alianças estratégicas com meninos mais
velhos que poderiam protegê-lo. E anos mais tarde ele descobriu que um
deles tinha viajado até o Mississippi para registrar eleitores, e que
tinha sido torturado e assassinado. "Isso mudou minha vida", diz ele.
"Ele nunca faturou em cima", diz Kornbluth. "Ele é um cara incrivelmente
inteligente, e poderia ter encontrado uma maneira de correlacionar isso
em dinheiro, como muitas pessoas fazem. Mas ele nunca fez. Ele tem uma
integridade absoluta. É quase chocante agora alguém que não faça isso.
Quer dizer, um dos cineastas que eu admiro é o Mike Leigh. E ele faz
comerciais do McDonald's, e eu disse 'poxa!' quando fiquei sabendo, mas
não posso usar isso contra ele. Não se pode usar isso contra ninguém que
esteja tentando ganhar a vida. Mas isso torna Rob ainda mais incrível.
Ele não participa de conselhos de direção. Nem de entidades de pesquisa.
Ele tira um salário modesto. Ele tem essa bússola moral absoluta. E ele
está realmente tentando mudar o mundo."
Na década de 1960 e 70 essa não era uma coisa tão surpreendente. Reich
se lembra de ter sido criado "numa época de gigantes". Seu primeiro
emprego foi trabalhando com Bob Kennedy. Mudar o mundo era o que todos
queriam fazer.
O mundo mudou. Só que não na maneira que muitos achavam que iria mudar.
Caímos vítimas daquilo que Reich chama de "a enorme mentira". A de que o
livre mercado é bom. E que o governo é ruim. O governo faz as regras,
Reich não para de nos lembrar, repetidamente. E ele decide quem se
beneficia dessas regras, e quem é prejudicado. E cada vez mais isso se
resume aos ricos e aos pobres.
Talvez a voz mais surpreendente no filme seja a de Nick Hanauer. Ele é
apenas o seu bilionário comum e cotidiano. Parte do 1%. Exceto pelo fato
de ele acreditar --como Warren Buffett-- que não paga impostos
suficientes. E que martelar a classe média, quem compra as coisas reais,
que cria a demanda, a qual por sua vez cria empregos e mais impostos, é
simplesmente ruim para a economia. "Ou seja, eu dirijo por aí com o
Audi mais sofisticado, mas ele é ainda apenas um... Três calças jeans
por ano, isso está bom para mim."
O sistema simplesmente não está funcionando, ele diz. Ele colocou os
milionários e bilionários, os Nick Hanauers e os Mitt Romneys --as
pessoas que a retórica republicana descreve como criadores de
empregos--, no centro do universo econômico, em lugar daqueles que
Hanauer diz serem os verdadeiros criadores de empregos --a classe média.
| Gail Oskin - 3.jun.96/Associated Press |
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| O então secretário do Trabalho dos EUA, Robert Reich fala em conferência sobre globalização da economia em 1996 |
O problema, diz ele, é que eles têm sido atacados por todos os lados.
Ele foi um dos investidores iniciais na Amazon, uma empresa da qual se
diz "incrivelmente orgulhoso", mas observa que, tendo faturado US$ 21
bilhões nos últimos três meses de 2012, a Amazon emprega apenas 65,6 mil
pessoas. "Se fosse um varejo familiar, seriam 600 mil pessoas, ou 800
mil, ou 1 milhão."
A globalização e a tecnologia desempenharam seu papel. Mas o governo
também. Durante décadas, tanto sob os republicanos quanto sob os
democratas, a maior alíquota tributária não caiu abaixo de 70%.
Agora,
Hanauer diz pagar 11% sobre uma renda de seis dígitos. Hanauer acredita
que, se fosse mais taxado, estaria melhor, porque sua empresa --ele é um
capitalista de risco, e sua família possui uma fábrica de
travesseiros-- venderia mais produtos, e ele iria, portanto, ganhar mais
dinheiro.
Isso é a desigualdade imposta de cima para baixo. Os gráficos de Reich
mostram que durante anos os rendimentos dos executivos-chefes
acompanharam o ritmo de outros empregados. Aí, em 2000-03, o valor
disparou para fora das tabelas.
Onde ainda se encontra. No Reino Unido, o Royal Bank of Scotland, tendo
se coberto de glórias no escândalo da manipulação da taxa libor, está
atualmente cogitando oferecer bônus de £ 250 milhões para sua divisão de
banco de investimentos, segundo reportagens de janeiro. Isso é, dito de
outra forma, o contracheque anual de pelo menos 12,5 mil trabalhadores
do seu callcenter. Esse não é apenas um problema americano. É britânico
também.
"Se houvesse mobilidade para cima, tudo bem", diz Reich no filme. "Mas
42% das crianças nascidas na pobreza nos EUA vão permanecer por lá. Na
Dinamarca, são 24%. Mesmo na Grã-Bretanha, onde eles ainda têm
aristocracia, são 30%."
Essa é provavelmente uma estatística chocante de se ouvir para os
americanos. O problema é que, por qualquer indicador que se mensure, a
desigualdade está piorando na Grã-Bretanha. Há menos oportunidades para
superar as barreiras do seu nascimento no Reino Unido do que em qualquer
outro país da Europa. Para uma plateia britânica, um dos momentos mais
assustadores de "Inequality for All" é ver como, confrontados com as
mesmas escolhas que os EUA fizeram na década de 1970, nós no último ano
trilhamos o mesmo caminho.
Um dos momentos cruciais para Reich foi a escassez de investimentos na
educação, particularmente na educação superior na década de 1970. Foi
então que os EUA adotaram as taxas educacionais, e sua força de trabalho
começou a ficar para trás da do resto do mundo. Quando oportunidades
para pessoas com origens de baixa e média renda começaram a encolher:
precisamente onde o Reino Unido está hoje.
Não é só que os salários se mantiveram estagnados nos EUA --como se
mantiveram no Reino Unido--, é que os gastos cotidianos dispararam, em
particular com educação e saúde.
O MUNDO VAI ATRÁS
Em outubro do ano passado, uma comissão independente do Reino Unido,
liderada pela Fundação Resolução, previu que em 2020 os salários para
famílias de baixa e média renda serão mais ou menos iguais ao que eram
em 2000. E no entanto todo o resto terá aumentado. Nós também estamos
enfrentando o aperto.
Em dezembro, o Departamento de Estatísticas Nacionais concluiu que as
pessoas na faixa dos 10% mais ricos na Grã-Bretanha detêm 40% da riqueza
nacional. Em Londres e no sudeste, um em cada oito lares tem
patrimônios superiores a £ 1 milhão. A metade de baixo do país não
possui patrimônio líquido, e só £ 4.000 em poupança para a
aposentadoria. Para essas pessoas, só há elevação de preços. E a
possibilidade cada vez menor de que um dia as coisas sejam diferentes
para elas ou para seus filhos.
"Onde os EUA lideram, infelizmente o resto do mundo vai atrás. Essa
mesma coisa está afetando as pessoas do mundo todo", diz Reich. "Se nada
for feito para reverter essa tendência, a Grã-Bretanha vai se ver daqui
a alguns anos exatamente no mesmo lugar que os EUA."
Dias atrás, notei que ele tuitou: "A economia da austeridade na
Grã-Bretanha é um desastre completo. Sua economia está encolhendo". E
colou um link para o "Wall Street Journal" em que a chefe do FMI chamava
George Osborne às falas. Quando lhe pergunto sobre isso, ele qualifica
nossa economia da austeridade como "uma travessura cruel". Cruel porque
"machuca pessoas que já foram suficientemente machucadas". E travessura
porque "simplesmente não funciona --veja os números".
Deveria ser a nossa hora do aperto também. Temos mais gente vivendo na
pobreza com empregos do que sem, segundo a Oxfam. O cidadão britânico
médio --o médio-- está a três contracheques da privação. E com o país
todo à beira da terceira recessão seguida.
Talvez a coisa mais improvável a respeito de Robert Reich é como ele é
animado, embora, sob qualquer aspecto, a desigualdade tenha piorado nos
Estados Unidos desde que ele começou a pregar sua doutrina. Ele não
parece deixar que isso o afete.
Há imagens dele da década de 1990, quando ele costumava ser um
comentarista político regular na Fox News, mas, à medida que a política
americana se deslocou para a direita, ele se viu retratado como um
perigoso esquerdista. "Robert Reich?", diz um comentarista em um trecho
de arquivo. "Ele é um comunista. Um socialista." Não é coincidência que
ele faça questão de dizer no filme que não é e nunca foi membro do
Partido Comunista. E ele e Kornbluth se empenham extraordinariamente
para não pronunciarem as palavras "Suécia" ou "Japão", e mesmo
"Alemanha" surge só de passagem.
De nada vai servir dizer ao povo americano o que estrangeiros esquisitos
estão armando. O filme é, em vez disso, bem sutilmente subversivo, a
estética contrária à de qualquer filme de Michael Moore. Ele tenta
educadamente levar seus espectadores a olharem para o mundo de forma
diferente, ao invés de sair batendo nas suas cabeças com um pesado
porrete de madeira com a palavra "polêmica".
Mas a política americana se tornou tão polarizada, tão ideologicamente
cruel, que é só questão de tempo até que o filme seja atacado pela
direita como sendo propaganda stalinista. "Mas estou acostumado a isso",
diz ele. "Tenho sido atacado no nível pessoal há 30 anos. Estou é
animado de que isso possa desencadear um debate. Embora eu esteja
tentando não exagerar nas minhas esperanças."
A hora do aperto nos EUA está feia. Reich acredita que tanto o movimento
Tea Party quanto o Ocupe brotam da mesma sensação de raiva e frustração
que as pessoas temem. Essa política vai se tornar mais polarizada, mais
extremista, mais cheia de ódio.
Uma das principais pesquisas citadas por Reich é um estudo de dados
tributários feito por Emmanuel Saez e Thomas Piketty, mostrando que os
anos de mais desigualdade de renda nos EUA foram 1928 e 2007. Logo antes
dos dois "crashes". "Os paralelos são notáveis", diz ele. É também
notável o que aconteceu nos anos posteriores a 1928. Como na Alemanha,
para pegar um exemplo aleatório, a depressão mundial também levou a uma
perversa polarização entre direita e esquerda. E a determinados outros
resultados.
Se isso poderia acontecer nos EUA? "Minha nossa, espero que não!", diz
ele. "Embora quando você entra em períodos de insegurança econômica com
ampliação da desigualdade, o que coloca a classe média sob estresse,
você cria um terreno fértil para demagogos de esquerda ou de direita. A
política do ódio. A política do medo. Já estamos vendo isso."
E no entanto, apesar disso tudo, ele continue esperançoso. "A mudança
sempre foi difícil", diz ele. É por isso que ele leciona. Se ele não
conseguir mudar o mundo, talvez seus alunos consigam. Ou as pessoas que
assistirem ao filme? Faço essa pergunta e recebo a clássica resposta
reichiana, contida, impassível, mas não inteiramente pessimista. "Estou
tentando manter minhas expectativas sob controle."
Tradução de RODRIGO LEITE.